Uma inovação terapêutica
Tem 49 anos e está completamente incapaz de se governar sozinha, depende de terceiros para as tarefas mais básicas - fazer a sua higiene diária, por exemplo. Mas já foi diferente, muito diferente.
Uma excelente estudante, conseguiu fazer o magistério primário e, posteriormente, uma licenciatura. Na sua área profissional esteve sempre entre os melhores, actualizando-se permanentemente. Foi-lhe diagnosticada uma perturbação bipolar, não sei exactamente quando. Aprendeu a doença e continuou a fazer a sua vida pessoal e profissional.
Entretanto, dentro de casa, o inferno. Numa terra pequena, com dois filhos, viveu enrolada na vergonha e no medo. Um dia os gritos eram tantos, os dela e os dos filhos, que se tornou impossível aos de fora manter a aparente surdez. Um homem novo bate à porta da mãe, que vivia perto, pede-lhe que vá em auxílio da mulher e avisa-a que ele próprio irá chamar a GNR. A pretexto de ir entregar ao genro "umas camisas passadas a ferro" bate à porta da casa do casal, onde os gritos e o choro continuavam. O homem barrou-lhe a entrada. Decidiu, então, pedir ajuda a um vizinho, com muito medo até porque achava que poderia ser desta que a filha lhe morria. Diz-lhe o vizinho "está bem, entre, eu marco o número e a senhora fala com os guardas, não quero problemas, o seu genro é mau, muito mau". Lá chamou a GNR que chegou pouco depois, já havia sido contactada.
Estava mal, ela, mal e muito estranha. Refugia-se em casa da mãe e do padrasto com as crianças. Não consegue estar sozinha, dorme agarrada à mão do padrasto e pede-lhe que não a deixe. Levada ao médico é-lhe reajustada terapêutica para "um episódio depressivo grave". Inicia-se o processo de divórcio - não vou descrever as peripécias macabras, os dinheiro que foram necessários arranjar para "safar" a casa da família. O estado clínico não evolui, o medo continua e as alterações de comportamento não remitem. Mais terapêutica "para a depressão". Muitos efeitos colaterais depois e muda-se de médico. E muda-se outra e outra vez. O já ex-marido foge do país, depois de ajustadas as mais valias da casa, claro. A incapacidade laboral é total, a baixa médica é mantida. Volta à escola sem actividade lectiva, por determinação dos colegas é colocada na biblioteca. Sol de pouca dura, as alterações comportamentais falam mais alto. A "depressão" não passa. Finalmente, 4 anos depois, um TAC. Bingo! Múltiplas lesões corticais, duas delas, as mais extensas, frontais, com mais que certa etiologia traumática. Irreversíveis. Está explicado o novo quadro clínico, um síndrome demencial. Se algum dia teve uma perturbação bipolar está curada, à tareia.
Ps: É, infelizmente, uma história real e fui autorizada por quem de direito a falar dela. Talvez ainda possa fazer-se alguma coisa por esta mulher, conseguir uma réstia de dignidade nos dias que lhe restam. Talvez. Não é fácil. Quantas mais existirão?