Os mistérios republicanos - I I
A polémica* em torno do sufrágio feminino foi acesa nos meses em que o governo preparava as eleições para a Assembleia Constituinte de 1911, realizadas em 28 de Maio desse ano. Por lapso ou omissão, a lei eleitoral, pouco diferente das leis eleitorais da monarquia, concedia direito de voto a «cidadãos portugueses com mais de 21 anos, que soubessem ler e escrever e fossem chefes de família».
Carolina Beatriz Ângelo, médica, viúva e mãe, pediu o recenseamento invocando a sua qualidade de chefe de família alfabetizada. Foi-lhe negado pelo ministro António José de Almeida, o mesmo que incentivara a formação da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, que prometera que, ao contrário do que se tinha passado com a revolução francesa, as mulheres não ficariam «logradas» pela futura República. Carolina Beatriz Ângelo interpôs recurso e o juiz João Baptista de Castro, pai de Ana Castro Osório, deferiu a sua pretensão por entender que «cidadãos portugueses» abrangia igualmente as mulheres. Nessas eleições votou a primeira mulher portuguesa e a primeira mulher na Europa do Sul.
Para as mulheres não terem mais veleidades sufragistas, o lapso foi corrigido pela Lei n.º 3, de 3 de Julho de 1913, em que foi especificado que apenas tinham direito de voto os chefes de família do sexo masculino que soubessem ler e escrever.
O direito de voto das mulheres só veio a ser consagrado em 1931, mesmo assim restrito a mulheres diplomadas com cursos superiores ou secundários enquanto aos homens apenas se exigia que soubessem ler e escrever. Adelaide Cabete foi então a primeira mulher a votar - em Angola onde residia. A situação de menoridade das mulheres foi mantida na Nova Constituição Política do Estado Novo que em 1933 estabeleceu a igualdade dos cidadãos perante a lei, "salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família" (Art.º 5.º). A discriminação permaneceu na lei eleitoral de 1946, que continuava a exigir requisitos diferentes para os homens e para as mulheres eleitores da Assembleia Nacional. Só em 1974 foram abolidas todas as restrições baseadas no sexo quanto à capacidade eleitoral dos cidadãos.
No entanto, todos somos testemunhas de que se a Revolução democrática, tal como a republicana, foi lesta nas primeiras vitórias foi pródiga em desilusões, nomeadamente na sua lentidão em reconhecer outras capacidades às mulheres. Por exemplo, a despenalização da interrupção voluntária da gravidez apenas foi conseguida em 2007, 33 anos depois da Revolução, 33 anos depois de Portugal se comprometer a reger por ideais de liberdade e igualdade reconhecendo a dignidade humana como valor central dos direitos fundamentais dos indivíduos, independentes de raça, género e credo. No entanto, apesar de todas estas promessas constitucionais, todas sabemos como foi difícil o processo de reconhecimento da dignidade das mulheres, nomeadamente o reconhecimento de um direito intrínseco, o direito à autodeterminação reprodutiva.
Recordo em particular a indignação que senti quando li o ponto 6 da mensagem à Assembleia da República que acompanhou a promulgação pelo presidente Cavaco Silva da lei da interrupção voluntária da gravidez:
«Por outro lado, afigura-se extremamente importante que o médico, que terá de ajuizar sobre a capacidade de a mulher emitir consentimento informado, a possa questionar sobre o motivo pelo qual decidiu interromper a gravidez».
O presidente de todos os portugueses, que nunca se engana mas que aparentemente tem ou teve dúvidas sobre as capacidades das mulheres e sobre os motivos (certamente fúteis) que as levam à decisão por uma IVG, deveria, quiçá, informar-se um pouco melhor sobre as capacidades daquelas que muitos esquecem na masculinização do termo que concerne à cidadania. Ou seja, em vez de lançar dúvidas sobre as capacidades das cidadãs nacionais, o presidente que também deveria ser de todas as portuguesas, poder-se-ia questionar porque razão a predominância do sexo feminino no número de licenciados e doutorados não acompanha a sua representatividade nos cargos de topo, nem a sua maior escolaridade se traduz numa remuneração maior, bem pelo contrário. E porque razão nestes indicadores, tal como em relação à violência sobre as mulheres, Portugal está na cauda do mundo civilizado.
Na minha opinião de republicana convicta e militante, um dos principais erros da 1ª República - em parte responsável pela sua morte prematura - assentou no mesmo menosprezo das capacidades das mulheres que subjaz a esta mensagem presidencial, ou seja, na relutância, há 100 anos como agora, de reconhecer capacidades às mulheres, de lhes conceder poder ou direitos.
Ana de Castro Osório, no seu livro A Mulher e a Criança, de 1910, escreveu: «Nós trabalhamos mais pela futura república lutando pelos nossos próprios direitos, do que prestando ao homem um auxílio», acrescentando que «não há país que avance e progrida se a mulher for nele uma serva perante a lei, uma inferior pela falta de instrução, um valor nulo na sociedade e na família.»
De facto, a construção e a consolidação da República passa pela luta pelos direitos de todos e não apenas de alguns, passa pela explicação do significado de ética republicana, um termo mais alienígena para os nossos políticos (de carreira) que a palavra República para o cidadão comum. Uma cidadania plena só será alcançada quando conseguirmos actuar a nível cultural, (a)firmando na nossa sociedade a ética republicana e a necessidade de eliminar discriminações baseadas em estereótipos, sociais, de género ou outros, quando conseguirmos para todos a cidadania plena que a palavra República deveria invocar. Fazê-lo é um desafio que compete a todos nós. E para fazê-lo é necessário, como referiu o Domingos, «que se participe, que se participe bem, em vez de se ser participado».
*A polémica estendeu-se à Liga Republicana das Mulheres, que se dividiu em duas, uma mais conservadora (e minoritária) liderada por Ana de Castro Osório, que saiu fundando a Associação de Propaganda Feminista, e outra mais revolucionária com Maria Veleda à frente. Ana de Castro Osório defendia o voto apenas para as mulheres instruídas porque considerava, assim como a maioria dos dirigentes republicanos, que dar voto a mulheres com um baixissimo nível de educação, na sua maioria analfabetas e dominadas pelo obscurantismo religioso, seria mau para a República. Maria Veleda considerava por um lado que o voto restrito agravaria a situação de desigualdade das mulheres e por outro que seria uma injustiça negar a algumas um direito que deveria ser de todas. Para Maria Veleda, a haver restrições ao direito de voto, deveriam ser iguais para mulheres e homens.