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Religião e argumentação - Livre arbítrio

«Peço que me digas se Deus não é o autor do Mal.»

 

Assim é aberto por Evódio o diálogo «O Livre Arbítrio» de Agostinho de Hipona, evidenciando que a suspeita de que o Mal poderia ser atribuído a Deus era algo comum à época e especialmente desafiador para alguém, como Agostinho, que fora um maniqueísta. Na realidade, Epicuro, um dos meus filósofos favoritos não só por ter desenvolvido o atomismo de Leucipo de Mileto e Demócrito de Abdera, é o autor da versão mais antiga do argumento do mal, que, ironicamente, nos chegou via Lactâncio, que era cristão:

«Ou Deus quer impedir o mal e não pode, ou pode mas não quer. Se quer mas não pode, é impotente. Se pode, mas não quer, é malévolo. Mas se Deus quer e pode, de onde vem então o mal?»

Epicuro considerava que a existência de um Deus todo-poderoso, criador, totalmente bom e omnisciente é incompatível com a existência óbvia de mal no Mundo e é essa incompatibilidade que Agostinho pretende resolver neste diálogo. A resposta de Agostinho continua a resposta mais popular ao argumento do mal embora na realidade apenas aborde o mal moral, aquele que resulta da acção humana como roubos, homicídios, violência, etc., e nada diga sobre o mal natural, terramotos, furacões, cheias, secas ou doenças (embora para alguns teólogos estas possam ser justiça imanente).

 

Para Agostinho, o livre arbítrio é considerado a origem do Mal, um fardo incómodo que só pode ser alijado por sujeição à vontade divina, expressa nas regras reveladas e respectiva interpretação por quem representa o Bem na Terra. Isto é, a ignorância de Deus e da vontade divina resultam necessariamente no Mal devido ao pecado original, uma variante da doutrina socrática de que a ignorância é a raiz do Mal .

«Homens maldizentes rosnam entre si, pecando e acusando a todos menos a si mesmos, a seguinte questão: Se foram Adão e Eva que pecaram, porquê nós, que nada fizemos, nascemos com a cegueira da Ignorância e os tormentos da Penosidade?
- Basta responder que existem aqueles que vencem a lascívia. Uma vez que Deus está em toda a parte, a ninguém foi tirada a capacidade de saber e indagar vantajosamente o que desvantajosamente se ignora.
- Aquilo que se pratica por ignorância ou por fraqueza, denominam-se pecados porque retiram sua origem do Pecado Original.
» [Capítulo XIX -A Negligência é culpável]

Assim, uma característica da doutrina cristã é a negação da capacidade intrínseca dos homens para agir bem sem intervenção da divindade (e daí as constantes acusações da hierarquia da Igreja aos ateus, considerados os obreiros de todos os males que afligem a humanidade, ou as afirmações de alguns crentes, mesmo nestas caixas de comentários, de que eu ou outros ateus que até se comportam de forma ética no fundo somos crentes no armário). Como afirma Feuerbach, em «A Essência do Cristianismo», este projecta todas as boas qualidades humanas no exterior, no Deus do Cristianismo, deixando ao homem apenas o reprovável. Claro que esta doutrina pode e tem sido contestada em particular nas três vertentes que passo a enumerar, não necessariamente por ordem de relevância.

 

Em primeiro lugar,como referi, só muito rebuscadamente se pode justificar o mal natural com o livre-arbítrio. Uma das respostas a este dilema é defender que a nossa passagem na Terra é «um vale de lágrimas» que nos prepara para as inefabilidades do paraíso. Ou seja, que Deus propositadamente nos sujeita a arbitrariedades trágicas para nós crescermos espiritualmente. Por outras palavras, o mundo é assim a modos o campo de treinos para a eternidade que este flyer sugere e todo o sofrimento humano foi cuidadosamente planeado por Deus para nos testar, para que possamos crescer espiritualmente e ganharmos a vida eterna.  Para muitos, isto é tão moralmente repugnante que é q.b. para refutar qualquer crença na existência de tal Deus. Outra das respostas é que todo o mal tem origem nos anjos caídos, isto é, Lúcifer e a hoste de anjos tornados demónios que o acompanharam na rebelião celestial, o que, em conjunto com toda esta estória do livre arbítrio levanta uma questão interessante que deixo para o post seguinte.

 

Em segundo lugar, uma questão sobre a qual muitos se interrogam tem a ver com o facto de que, mesmo admitindo que as leis da natureza não poderiam ser diferentes do que são e que não havia forma de Deus ter evitado o mal natural se nos queria criar como os seres biológicos que somos, não há qualquer razão plausível que o impedisse de nos  «desenhar» como pessoas, dotadas de livre arbítrio é certo, mas mais éticas. Para mim pelo menos parece muito complicado aceitar que as pessoas mais éticas são necessariamente menos livres do que as outras e que portanto Deus nos fez assim para não restringir a nossa liberdade. Uma pessoa boa, ética, altruísta e verdadeira é tão livre quanto um serial killer. Ou seja, parece-me que a hipótese de que as pessoas são o que são, umas mais boas que outras, devido às vicissitudes da nossa evolução natural é muitíssimo mais plausível do acreditar que  Deus nos criou mauzinhos mas com uma alma imortal que pode ser «salva» por submissão à sua vontade.

 

Por fim, o mal, quer o natural quer o moral, é fácil de aceitar para os ateus que o veêm apenas como uma consequência dos acasos da evolução que nos levaram e ao Mundo a ser como somos, mas é uma monstruosidade moral se acreditarmos num Deus omnipotente e omnisciente. Pior do que haver terramotos, homicídios e cancro é terem sido planeados e abençoados por um Deus criador que poderia ter feito a Terra como os crentes nos dizem ter feito o Paraíso. O que levanta a questão que nunca vi abordada por nenhum teólogo e que desenvolverei no próximo post - e que foi a primeira pergunta a que tentei responder no meu processo juvenil de descrença: haverá livre arbítrio no dito Paraíso?

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