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anti-liberdade

Em Portugal existem duas instituições das quais é como que interdito dizer mal. Qualquer crítica que lhes seja endereçada é refutada com o mesmo tipo de argumentos, que, na verdade, se resumem a um: a pessoa que critica deve ter (tem de ter) “um problema qualquer” com a instituição em causa, assim a modos que um trauma, uma mania persecutória, um complexo, uma fobia. É o chamado argumento da desqualificação do adversário, um argumento que se exime, assim, ao decretar o crítico como alguém com preconceito, parti pris, total ausência de isenção e equilíbrio face ao objecto em causa – ou seja, como maluquinho -, de apresentar propriamente ditos argumentos que contraditem as críticas.

 

Não é pequena ironia que as duas instituições em causa sejam historicamente consideradas como arqui-inimigas, porque o tipo de reacção que partilham em relação às críticas está longe de ser a única característica em comum. Na verdade, são praticamente gémeas. Da inquestionabilidade dos dogmas à declaração da infalibilidade dos respectivos líderes e modelos; da capacidade de negar a realidade e funcionar em universos paralelos à apologia da vitimização; da forma como lidam com as diferenças de opinião e com a liberdade de expressão (que não a sua de declarar as outras inexprimíveis, ou blasfemas) à cega obediência hierárquica e ao esmagar das dissensões; da monótona reprodução da doutrina à apresentação de um devir paradisíaco como justificação de todas as agruras e malfeitorias presentes, passadas e futuras. E continua: na pretensão de serem as legítimas protectoras, defensoras e intérpretes dos desfavorecidos; na detenção de uma lista de mártires como garantia de superioridade moral; no decreto de que são as únicas e inigualáveis detentoras da verdade e do bem – aliás, têm o exclusivo.

 

Sim, adivinharam: falo do Partido Comunista e da Igreja Católica (entendida no sentido da estrutura hierárquica e não na acepção, mais correcta e democrática, da assembleia dos fiéis). Vejamos, então: quem critica a IC é acusado de anti-clericalismo (se seguir uma religião que não a católica, o motivo será então a “concorrência” -- fundamentalista, claro); quem critica o PCP é rotulado de anticomunista, geralmente secundado pela expressão “primário”. Primário, pois, como em incipiente, em básico, em “sem pensamento”, “sem reflexão”, “sem motivo sério”. E “anti” como em fóbico, em raivoso, em de cabeça perdida. Nem pensar em gente que critique estas duas imaculadas instituições que não seja por raivinhas de dentes, como aquelas, sem outro motivo que o prazer de estralhaçar coisas, que dão aos cachorrinhos.

 

Se o vocábulo anti, colocado antes de racista, de fascista ou nazi acrescenta valor, já antes de comunista ou clerical pretende, pois, dar ares de doideira. O que nos leva à conclusão de que a percepção geral do clericalismo e do comunismo deverá ser, por qualquer motivo, favorável. Ora, clericalismo significa “corrente de opinião que pretende submeter a vida social, para além do aspecto religioso, à influência do clero; sistema de apoio incondicional ao clero” (assim uma coisa do tipo do que se passa no Irão); e o comunismo dos partidos comunistas, nomeadamente o português, é, até prova em contrário – ou seja, abjuração até hoje inexistente – aquilo que se passava na belíssima União Soviética, mais o que se passa nas insuperáveis Coreia do Norte e China. Parece pois mais ou menos óbvio – básico, mesmo – que qualquer pessoa que preze a liberdade só poderá ser resoluta e inquebrantavelmente contra semelhantes regimes ou ideologias. E que o facto de PC e IC usarem tais apodos contra qualquer crítico lhes devolve, em ricochete e ao cubo, a qualificação de primarismo, paranóia e falta de fusíveis. Além de assentar-lhes, como luva, a de anti-tudo o que não seja ámen.

 

(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 24 de outubro)

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