Documenta Sinica
Em fim-de-semana de visita de Hu Jintao a Portugal, pensei que se justifica uns quantos apontamentos acerca do seu significado. Como é por demais evidente, sou um absoluto néscio em dívidas públicas e respectivas compras por países terceiros e interesso-me mais em perspectivar o enquadramento histórico de certos factos da actualidade que, caso contrário, surgem desgarrados, descontextualizados, entendidos como milagres ou ameaças e invariavelmente mal-entendidos. E como a memória é curta, convém sempre dar uma espreitadela à floresta antes de descascar a árvore. No caso da China, o apelo à memória adquire especial relevância, por um motivo muito simples: o Ocidente é vulgarmente amnésico em relação à importância das civilizações não-europeias e enferma geralmente do "mal colonial" (ou "arrogância imperial", para ser mais exacto) que tende a considerar a civilização europeia como o centro do mundo; não apenas no nosso tempo (o que é incontestável), mas algures a partir do século XVI, precisamente na consequência do papel pioneiro que Portugal desempenhou na primeira globalização mundial. A recente ascensão da China como potência económica fez e faz disparar alarmes, suspeitas e receios, não só por se tratar de uma cultura estranha, com uma língua incompreensível e uma mentalidade assaz diferente do que são os nossos padrões, mas porque achamos que é uma bizarria inédita, uma espécie de "efeito indesejado" de uma mistura contra-natura entre capitalismo e comunismo.
Desenganem-se todos, meus caros: a China tem uma história de 4 milénios, na qual comunismo ou capitalismo são meros acidentes de percurso, episódios momentâneos, e não é a primeira vez que domina a economia mundial; nós é que, durante muito tempo e sempre preocupadíssimos com o nosso umbigo, achámos que não, que quem marcava o compasso eram as cascas de noz com que passávamos as Tormentas, as armaduras do Albuquerque e as cruzes de S. Francisco Xavier. Depois, para épocas mais recentes, iludimo-nos com o "55 Dias em Pequim" e as imagens de uma China faminta de arroz e vestida de uniforme azul à Mao. O acordar da ressaca é sempre desagradável.
Na verdade, a superioridade ocidental é algo de recente, com pouco mais de 2 séculos, e coincidiu com os becos-sem-saída em que a dinastia Qing se deixou encurralar. Antes disso, o "eurocentrismo" era coisa pouco consistente: a Europa viveu séculos com imagens miríficas do Cataio de Marco Polo, e quando os europeus lá chegaram, ficaram abismados com a dimensão de um reino imenso, poderoso, ordenado socialmente, com leis aperfeiçoadas, requinte cultural e uma religião que, acharam muitos, não diferia substancialmente do cristianismo-padrão; e, sobretudo, uma dimensão, uma escala de grandeza verdadeiramente impressionante. É interessante verificar a forma como essa admiração contrastava com apreciações pouco abonatórias: a primeira sobre "o sistema", as segundas sobre os habitantes, como se os chineses fossem uma perfeição colectiva mas um poço de defeitos, se individualmente considerados. De entre os aspectos que mereciam especial louvor, havia um especialmente relevante aos olhos dos europeus da época: o de que a ascenção social na China era marcada pelo mérito e não pela "limpeza de sangue" ou pelo estrato social de onde se provinha. O funcionalismo chinês era aberto a todos, e a progressão estava sujeita a provas a que todos se tinham que submeter; eram os mais capazes, os mais válidos, que progrediam, e não os mais ricos ou de origem social mais elevada.
Os espanhóis chegaram a acalentar projectos, nascidos da euforia da conquista do Novo Mundo, de conquista militar da China, rapidamente afastados logo que o seu conhecimento da realidade chinesa ultrapassou a simples dimensão costeira de Cantão e do Fujian. Os portugueses, sempre práticos, haviam já percebido o enorme potencial chinês, rapidamente aprenderam com os seus próprios erros e conseguiram, informalmente como é seu apanágio, edificar aquele prodígio histórico chamado Macau, um verdadeiro monumento ao pragmatismo e à convergência de interesses múltiplos ao arrepio de burocracias e legislações.
Na viragem para o século XVII, a primeira economia-mundo estava em marcha. Fomos ensinados a pensar no "pacto colonial", no fluxo de escravos africanos para a América, nas plantações de açúcar, na "economia triangular" atlântica e na hegemonia europeia em ascenção, prelúdios do domínio britânico e francês sobre o mundo. Na verdade, este só surgiu numa época bem mais tardia. Nos séculos XVI-XVII, era tudo menos claro que o "modelo europeu" levaria a melhor sobre outras potências. Nomeadamente a China. Recentemente, alguns autores têm lançado novas perspectivas sobre estas questões. Num importante estudo datado de 2000, Kenneth Pomeranz ("The Great Divergence") explica como a "divergência" entre a Ásia e a Europa, com o "arranque" desta, algures na 2ª metade do século XVIII, ficou essencialmente a dever-se a um crescimento económico originado por uma localização mais vantajosa de uma fonte energética (o carvão) em conjugação com o comércio atlântico. Outros autores (como Arturo Giráldez e Dennis O. Flynn) afirmam que, até essa época, era a China que dominava a economia mundial, essencialmente através da absorção maciça de prata japonesa e, sobretudo, americana, que lá chegava por via de Manila. Já Vitorino Magalhães Godinho chamara à China uma "bomba aspirante" de prata. E que efeitos teve isto? Um imediato: à medida que a prata do Potosí inundava o mercado chinês, o seu preço ia descendo, até atingir um limite abaixo do qual se tornava pouco ou nada atractivo para quem abastecia; e quem abastecia? Filipe IV; as quebras nas receitas da prata, algures nos meados do século XVII, deixaram os Habsburgos espanhóis a braços com uma crise financeira sem precedentes, que impossibilitou o financiamento do enorme esforço de guerra em toda a Europa e que, em última análise, levou ao colapso do império, a Westphalia / Munster, à emergência das potências norte-europeias e ao surgimento de todo um novo equilíbrio europeu e, por consequência, mundial. Voilá. Foi a China e a sua "saturação" de prata, segundo alguns. Outros, como Andre Frank (em "ReOrient"), seguem outras vias mas concluem o mesmo: o mundo até ao século XIX era essencialmente, e do ponto de vista económico, sinocêntrico. O de hoje não o é, mas veremos se e quando o voltará a ser.