democracia esborratada
A detenção pela PSP, a meio de Outubro, de um grupo de cinco jovens que estava a pintar um mural da JCP, em Arroios, Lisboa (detenção essa cujos termos são só por si um assunto que não vou tratar aqui), suscita um muito necessário debate sobre a liberdade de pintar paredes e os seus limites. Comecemos pela lei: a que regula a “'Afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda” é de 1988 e diz que “em cada município a afixação ou inscrição das mensagens de propaganda é garantida nos espaços e lugares públicos necessariamente disponibilizados para o efeito pelas câmaras municipais”. Em espaços privados, a utilização para aqueles fins carece de consentimento do proprietário. Monumentos e edifícios ocupados por órgãos de soberania, assim como templos e sinais de trânsito são sempre off limits.
À partida, pois, parece claro (e sensato): para afixar propaganda política será sempre necessária autorização – em lugar público, da autarquia; em suporte privado, do dono. É esse, de acordo com as respostas dadas aos media pela direcção nacional da PSP, o entendimento da polícia. Mas em 2007 um requerimento de um deputado comunista solicitando ao ministério da tutela a clarificação de uma directiva da PSP de 2001 que equivale a pintura mural a crime de dano teve esta resposta: “a directiva não respeita à pintura de murais por militantes ou simpatizantes de partidos políticos (...) mas sim à pintura de graffiti, nos casos em que estes constituem actos de vandalismo e de danificação da propriedade”. E o acórdão 636/95 do Tribunal Constitucional, exarado em resposta a um pedido de fiscalização da inconstitucionalidade (subscrito por deputados do PCP) de várias normas da lei citada, baralha ainda mais as coisas.
É que, se afasta a inconstitucionalidade da lei, o TC ressalva: o exercício da propaganda não tem de confinar-se “aos espaços e lugares públicos disponibilizados pelas câmaras municipais”. Não; não se trata de “perturbar o domínio de protecção do direito fundamental de liberdade de propaganda. Ao impor às câmaras municipais um dever de disponibilização de espaços e lugares públicos para o exercício desse direito, a mesma norma está tão-só a abrir possibilidades de comportamento no quadro de uma posição livre dos sujeitos.” Certo -- que raio quererá isto dizer? Que qualquer pessoa pode, sob pretexto do tal “direito fundamental da liberdade de propaganda”, pintalgar toda a propriedade pública que não se enquadre nas excepções proibidas? E, afinal, o que é propaganda? O TC traduz: “toda a divulgação de natureza ideológica, designadamente, a referente a entidades e organizações políticas, sociais, profissionais, religiosas e culturais”. Tudo e um par de botas, portanto. Assumindo, porém, que as autoridades teriam meios para distinguir uma mensagem de propaganda de outra qualquer, que devem fazer ao passar por um grupo que está a pintar um mural? Perguntar que tipo de mensagem é a deles? Esperar que acabem para ver se se insere na liberdade de propaganda? Isto, claro, enquanto averiguam da propriedade do local, para saber se é público ou privado?
Sim, tudo isto parece uma piada, mas é pelos vistos o imbróglio jurídico que temos – com pelo menos um partido com assento parlamentar, o PCP, a considerar qualquer licenciamento da afixação ou inscrição de propaganda como “censura prévia”. Uma expressão que não terá ocorrido aos vereadores comunistas lisboetas quando em 2008 a Câmara da capital removeu da Rotunda de Entrecampos um cartaz do Partido Nacional Renovador alegando que a mensagem nele contida não tinha sido licenciada previamente. É: há propaganda e propaganda, liberdade e liberdade. A de quem gosta de paredes limpas, por exemplo, parece não valer nada.
(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 7 de novembro)