jornalismo totalitário
Esta semana, o Correio da Manhã e o DN publicaram peças em que se reproduziam excertos daquilo que era apresentado como uma conversa da eurodeputada socialista Edite Estrela com Armando Vara gravada em Junho de 2009 e cuja transcrição, dizia-se, "está" no processo "Face Oculta". Os excertos reproduzidos diziam respeito a opiniões da eurodeputada sobre os seus colegas de grupo parlamentar que, porque alegadamente insertas num processo criminal entretanto público, foram consideradas por estes dois jornais como constituindo facto de interesse público e portanto publicável. Os jornais não entenderam, perante o teor da dita conversa, fazer algumas perguntas básicas, como: que está isto a fazer num processo criminal? Que relevância tem para a obtenção de prova? É legal manter esta conversa no processo? Chega para ser legal que a escuta tenha sido, após transcrita, validada por um juiz? Se esta escuta não tem qualquer relevância para o processo em causa, que critério presidiu à sua não destruição? Não, os jornais não perguntaram nada. Ou por outra, este jornal onde escrevo decidiu perguntar aos "visados" pelas opiniões de Edite Estrela que opinião têm das opiniões dela. Alguns escusaram-se. Mas Ana Gomes, por exemplo, achou a coisa de gargalhada. Sim: à inflamada denunciadora da violação dos direitos humanos em Timor, Guantánamo e aviões da CIA em geral, à mulher que ninguém cala - e bem - a propósito do abuso de força pelos Estados, a escuta sem critério e a reprodução mercantil de conversas privadas em Portugal dá uma louca vontade de rir. A risota de Ana Gomes é o retrato da bonomia com que a generalidade das pessoas assiste à edificação de um totalitarismo que as devia aterrar. Um totalitarismo que estabelece o sistema judicial como centro do poder - um poder insindicado e insindicável, que recusa qualquer questionamento como "interferência" e "pressão" - e o jornalismo como o seu braço armado, reagindo a qualquer crítica com o anátema da censura; um totalitarismo que transforma dois dos mais preciosos garantes da democracia nos seus carrascos. Como todos os totalitarismos, este afirma-se incidindo primeiro num grupo, para depois alargar o seu âmbito. Quem não faz parte do grupo atacado encolhe o ombros: "Não é comigo"; a banalização da perseguição acaba por a naturalizar: "Eles merecem." Há quem não se ria: no domingo, José Leite Pereira, director do Jornal de Notícias, referia-se à "notícia" do Correio da Manhã como "jornalismo de sarjeta" e "crime". Segunda-feira, ao receber o Prémio Gazeta de Jornalismo, o repórter da Visão Miguel Carvalho dizia: "Sei que o jornalista não pode mudar o mundo. Mas continuo a pensar que é nosso dever tentar exercer a profissão como se isso fosse possível. E para isso não basta ser livre. É preciso ter coragem." Coragem, então. Precisamos de muita. Antes que o jornalismo, ou isto que tomou o seu nome, mude mesmo o mundo - e não para melhor.