Memórias de Timor
(foto obtida aqui)
Fez ontem 35 anos que foi proclamada a República Democrática de Timor-Leste, data oficialmente tomada por "dia da independência". A outra, a de 20 de Maio de 2002, quando Timor-Leste se tornou de facto independente, com reconhecimento internacional, é apenas a "Restauração". A efeméride, que não vi assinalada por cá, é alvo de profunda controvérsia e de discórdia, como o é todo o passado recente da parte oriental da ilha. Hoje ouvi na televisão que a PT vai de vento em popa nos negócios de rede móvel e de internet por lá, graças à concessão exclusiva que o governo lhe concedeu até 2017. O mundo mudou muito nas últimas décadas, e Timor também.
As minhas "memórias de Timor" não são lembranças de contacto com a realidade timorense ou histórias de qualquer estadia na ilha. Nunca lá estive, mas acompanhei, desde a minha juventude, o que por lá se passava. Não tive qualquer conhecimento do que se passou nos anos negros de 75 e seguintes, com uma pobre província ultramarina subitamente desnorteada e embriagada pela euforia de um punhado de revolucionários formados à pressa, ingénuos, idealistas e brutais; da turbulência social, da vontade dos portugueses em abalar dali antes que se fizesse tarde, dos ódios e das cisões acirradas por camaradas vindos da metrópole, da guerra civil, do completo caos do Verão Quente de 75, cá como lá; e, depois, da forma como se precipitaram os acontecimentos, dos fuzilamentos pela FRETILIN, de Maggiolo Gouveia. Por fim, a proclamação unilateral da independência, a forma completamente irresponsável como os portugueses abandonaram o território, o vazio, a luz verde de Kissinger e o avanço indonésio, no dia 7 de Dezembro, a repressão brutal, a violência indiscriminada, o início do pesadelo que duraria um quarto de século. Por cá, Lisboa reagia da pior forma: cortava relações diplomáticas com a Indonésia, brilharete de orgulho mas desastre diplomático, pois cortou os canais de comunicação e inviabilizou qualquer possibilidade de acordo, de contenção, de pressão e condenou Timor ao isolamento, às mãos do carrasco. Em plena Guerra Fria, o seu destino estava selado. Depois veio o silêncio e, por fim, o conformismo.
Lembro-me bem da primeira vez que tomei conhecimento do que se passava na ilha. Foi em 1983, ao ler uma peça do Expresso. Um choque, para quem tinha 16 anos e tomava consciência dolorosa de uma injustiça absurda, de um povo sacrificado e sujeito a um jugo feroz e a uma repressão impiedosa. Nessa altura tive alguma dificuldade em entender a razão porque era uma caso esquecido e, sobretudo, como era possível que a ocupação prosseguisse com apoio norte-americano, de quem Portugal era fiel aliado. Lembro-me de achar uma ignomínia sem nome, e de considerar que Portugal deveria imediatamente colocar a super-potência entre a espada e a parede, exigindo o fim imediato da ocupação, sob pena das mais severas sanções. E que desenhei um logotipo, numa mesa de uma café em Sintra, com a palavra "Timor", onde o T era uma palmeira que largava uma pinga de sangue que formava a pinta do i. Quando se tem 16 anos pensa-se assim. Não havia internet nem redes sociais, mas discutia este assunto com os meus colegas mais chegados. Eram militantes ou próximos do PCP e apesar de eu ter gerado alguma desconfiança inicial por pertencer, nessa altura, a uma associação de estudantes da JC, entendíamo-nos muito bem, o que me provou desde cedo que as diferenças ideológicas são apenas isso. Cedo descobri que a história era uma pouco mais complicada (não por obra e graça deles, que, como bons PCPistas, atribuíam toda a responsabilidade da tragédia timorense ao imperialismo americano). E também me lembro de, algures em 1987, ter confrontado o docente de Relações Internacionais com a questão, e ter recebido um sorriso de desdém e uma breve explicação de que se tratava de "uma questão arrumada". Aprendi posteriormente a não me fiar nos analistas e estrategos geopolíticos, um pouco à semelhança do que ocorre presentemente com os analistas económicos.
O segundo momento da minha memória de Timor aconteceu em 1991, com o massacre de Santa Cruz, como ocorreu um pouco com todos os portugueses, que subitamente despertaram para uma questão adormecida, inerte e que alguns criam já enterrada. O refrescamento das minhas reflexões não teve lugar devido a contacto com gente ligada ao PCP ou com académicos de cartilha, mas sim com um outro campo. Foi nos tempos em que militei e trabalhei na vetusta Sociedade Histórica da Independência de Portugal e contactei com monárquicos e gente ligada a sectores nacionalistas, onde o problema timorense se limitava a uma "contenção da ameaça comunista", num implícito apoio à ocupação indonésia. Ouvi o general Kaúlza dizer isso mesmo, que a Indonésia tinha "feito bem" porque o mais importante era travar os comunistas, o eterno papão que toldava entendimentos e raciocínios. A repressão e as atrocidades eram, depreendi, "efeitos colaterais", como se diz agora. Certo dia ouvi um respeitável cavalheiro afirmar, com toda a convicção do mundo, que "os timorenses não querem ser independentes, como dizem os comunistas da FRETILIN, querem é ser portugueses". Lembro-me de ter comentado, na ocasião, que não compreendia como é que alguém tão zeloso da independência do seu país podia ter tão pouco respeito pela alheia. Depois veio o que se sabe, a década de 90, com o Lusitânia Expresso e o Nobel da Paz pelo meio até desembocar no Verão de 99 e no aperto que foi assistir ao referendo e à barbárie indonésia sob a forma das milícias armadas. Foi um momento de rara motivação nacional em torno de uma causa, como nunca mais assisti. Pelo meio ficou a demonização dos indonésios, espécie de encarnação do Mal na Terra durante anos a fio. Houve até um senhor, na altura deputado e comentador de sucesso e posteriormente Secretário de Estado, que descobriu, com a sua peculiar indignação, que esse Mal caminhava entre nós, entranhado na própria sede da democracia portuguesa sob a forma de drives e componentes dos computadores da Assembleia da República que eram, horror!, made in Indonesia, e que ninguém se atreveu a contestar o cavaleiro andante. Não sei se chegaram a desmontar os computadores todos e a fazer uma grande fogueira com essas vísceras malignas ou a contratar algum exorcista encartado. Sei, sim, que percebi na altura que o ridículo não tem fronteiras e que há zelotas em todas as épocas. Foi a época em que se exaltaram e admiraram as qualidades da resistência, tanto a urbana como a do mato, e se elevou Xanana Gusmão à categoria de herói, mistura de Nelson Mandela e Che Guevara. A causa timorense passou a ser nossa, mau-grado alguns disparates de todo o tamanho, como a aberração de chamar maubere à gente da ilha, neologismo idiota de raiz ideológica que fez escola e que serviu, até, de mote a um hino composto e cantado por Rui Veloso.
Depois, tudo acabou. Sempre cri (e continuo convicto) de que a independência de Timor foi a única solução possível depois de décadas de opressão indonésia, e que os timorenses tinham o direito à autodeterminação, ou seja, a escolher o seu destino. Porém, em 1975, a questão não se colocava desta forma: uma integração na Indonésia tinha sido possível e, provavelmente, desejável, a melhor solução no contexto que então se vivia; uma integração sustentada, acordada, auscultada, com garantias de autonomia, de liberdade de culto, de movimentos, de escolha, de língua e de cultura. Não era independência, era autonomia. Timor não seria hoje independente. Não fossem os javas tão cegos, soberbos, mal-informados e mal-comandados, não fosse o poder de Jakarta uma autocracia sustentada por Washington a todo o custo, não estivesse Portugal mergulhado no turbilhão do PREC, não fosse o mundo viver uma fractura inconciliável ente dois blocos à beira do conflito nuclear. 35 anos depois, entre uma lenta e dolorosa aprendizagem da convivência democrática, o sarar das cicatrizes do passado, a desconfiança perante a prepotência australiana, o dinheiro do Timor Gap e as mazelas de uma geração perdida, Timor encontrará o seu caminho. Um Timor independente, à custa de centenas de milhares de mortos, o preço da independência.