Independança I
Há exactamente 370 anos, um pequeno grupo de elementos da pequena nobreza entrava no Paço da Ribeira, sequestrava a regente do reino, atirava pela janela o secretário Miguel de Vasconcelos e proclamava à rua a deposição de Filipe III e a aclamação do duque de Bragança como novo rei de Portugal. Foi o início da revolta que viria a colocar um fim a seis décadas de uma experiência política singular, num processo longo e difícil que só ficou formalmente encerrado em 1668, com um tratado em que Carlos II reconhecia a separação de Portugal e a nova dinastia reinante. Por cá, este processo ficou conhecido por "Restauração" [da independência]. Toda a memória do período anterior ficou condicionada à estratégia de legitimação da nova casa que passou a ocupar o Paço da Ribeira, definindo uma "usurpação" do trono português em 1580/81, um hiato de 60 anos de governo ilegítimo e, finalmente, a retomada daquele para a linhagem de Bragança, por via do proclamado rei D. João IV, neto de D. Catarina que em 1580 perdera a corrida a favor de Filipe de Habsburgo. Uma retórica acerca da "perda da independência" e da "ocupação espanhola" foi lentamente sedimentada ao longo de gerações, permitindo a formação de todo um imaginário de heróis, vilões, decadência e, evidentemente, exaltação da "Restauração". O 1 de Dezembro passou a feriado nacional e a data da celebração de Portugal face a potências estrangeiras, da sua soberania como nação livre e independente, nomeadamente por reacção ao surgimento de teses iberistas, no século XIX, que preconizavam uma fusão entre Portugal e Espanha. O Estado Novo apropriou-se evidentemente da temática.
Hoje, o 1º de Dezembro é um feriado sem grande expressão, celebrado essencialmente por monárquicos, nacionalistas mais exaltados ou velhas glórias enresinadas da Mocidade Portuguesa. Os noticiários falam da candidatura conjunta de Espanha e Portugal ao Mundial de 2018, uma crise económica e social, com origem nos Estados Unidos, afecta igualmente ambos os países e D. Duarte Pio, o herdeiro da Casa de Bragança, gostaria de obter cidadania timorense. As noções de independência e de soberania estão em clara mutação e os portugueses estão paradoxalmente orgulhosos da sua independência sem excluir uma hipotética união ibérica; nas televisões não se fala nos 60 anos de destino comum de há quatro séculos, antes prefere-se mostrar imagens da recente vitória da selecção portuguesa contra os campeões do mundo. O presente muda, as perspectivas do futuro alteram-se e actualizam-se todos os dias, mas a memória e percepção do passado mantêm os cânones e os formatos de há décadas, de há séculos, que subsistem e sobrevivem. A revisitação desse passado, a reavaliação dessa época é objecto do interesse de um punhado de estudiosos, de um pequeno sector académico. Nada mais. Continuamos a falar em "domínio espanhol" e "perda de independência" e de "Restauração"; e quando se discute a fiabilidade e validade destas noções, há sempre emoções a aflorar, desconfianças, apelos patrióticos, acusações de "falta de patriotismo".
(continua)