Os Limites da Interpretação
(com a devida vénia)
Diz-se que o Primeiro-Ministro mentiu ao dizer:
"Sr. Presidente, Sr. Deputado Francisco Louçã, respondo, com o maior gosto: nunca nenhum membro deste Governo, nunca este Governo foi informado ou recebeu qualquer espécie de pedido de autorização para sobrevoo do nosso espaço aéreo, ou para aterragem na Base das Lajes, de aviões que se destinassem ao transporte ou à transferência de prisioneiros. Nunca aconteceu neste Governo, nem temos no Ministério dos Negócios Estrangeiros registo que possa indiciar que essa consulta existiu no passado.»
em resposta a esta pergunta, do Deputado Francisco Louçã:
«Sr. Francisco Louçã (BE): Sr. Presidente, Sr. Primeiro-Ministro, queria saber se está em condições de me assegurar que nenhum membro do Governo do seu Governo autorizou ou teve conhecimento de qualquer transporte de prisioneiros da CIA por território português para o gulag de Guantánamo." (negrito meu)
Ora, presumindo que o Primeiro-Ministro estava a responder, efectivamente, à questão do Deputado Francisco Louçã, o seu âmbito limita-se ao "transporte ou à transferência de prisioneiros" para Guantanamo.
Para quem pretende atacar o Primeiro-Ministro, o que acabo de sublinhar é uma desculpa esfarrapada, inaceitável, inacreditável, risível. O fim do mundo e da decência.
Para quem não pretenda atacar o Primeiro-Ministro mas discutir a questão de Direitos Humanos, a distinção é fundamental: toda a discussão em torno dos voos ilegais da CIA, a menos que tenha percebido mal os últimos anos, só faz sentido porque se invoca que os EUA estavam a levar prisioneiros ilegais para Guantanamo onde estes ficariam à margem do Direito Internacional e sujeitos a tortura. Já quando os EUA os libertavam e enviavam aos respectivos países de origem, embora tal não repare o mal feito, estavam a agir correctamente. Contudo, mesmo esse repatriamento não está isento de perigos (ler, por exemplo, este artigo), o que justifica, e muito, as preocupações de cumprimento do Direito Internacional, exigidas por Luís Amado, tal como reveladas pela comunicação da wikileaks.
Tudo isto serve para demonstrar 2 coisas simples:
1. A pergunta do deputado Franscisco Louçã e a resposta do Primeiro-Ministro dizem respeito aos voos de transporte de prisioneiros ilegais para Guantanamo, o que é compreensível e relevante dadas as acusações de tortura e desconsideração pelo Direito Internacional;
2. A comunicação divulgada na Wikileaks diz respeito a voos a partir de Guantanamo, de libertação de prisioneiros (veja-se também este post da Isabel) mas, ainda assim, o Estado Português revelou preocupação com os destinos dos passageiros, de acordo com a sua matriz constitucional.
P.S. - Amanhã poderão aparecer provas de que todo o Governo português sabia e apoiava a passagem de voos ilegais da CIA por território nacional com destino a Guantanamo. Mas é preciso viver com um mínimo de reality check (até porque já demos para a causa oposta na Idade Média onde nos divertimos a caçar bruxas que, curiosamente, não eram bruxas). Por isso, até aparecerem estas provas, vou continuar a aceitar que o Governo não sabia de quaisquer voos ilegais, com destino a Guantanamo e sobre os quais foi questionado na Assembleia da República.