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Hoje é Dia de Sta. Falácia e Sto. Preconceito

 

Li com alguma surpresa os posts (aqui, aqui e aqui, só para relembrar) que a Palmira dedicou ao que há dias escrevi acerca do debate Blair-Hitchens, não que me tivessem surpreendido as suas opiniões no que à religião diz respeito, mas sim no que revela sobre mim próprio e o que escrevi. Descobri uma série de coisas que não sabia, mas como estou sempre a aprender, fico contente por ter quem mas explique de forma tão convincente, sensata e irrefutável. Por exemplo, percebi que o primeiro e mais importante erro do meu texto foi ter usado o termo "falácia"; para mim, e usando a acepção do senso comum, "falácia" é engano, ou seja, o tema do tal debate é "falacioso" porque condiciona, logo à partida, a discussão a uma dicotomia moralista absurda: "Be it resolved religion is a force for good in the world", sim ou não. Pois para a Palmira, é mais importante fazer jogos de palavras e esclarecer-me sobre "o que é a lógica informal que estuda as falácias formais e informais que ocorrem quando as pessoas argumentam". Fiquei esclarecido, mas não me apetece muito ir por aí. Agradeço a chamada de atenção para a importância do rigor conceptual, de que não me esquecerei quando a Palmira vier um dia destes falar, por exemplo, em jihâd, em Islão ou noutro assunto afim. Mas prefiro admirar como alguém conclui pelas minhas palavras que fiquei "muito maçado com o debate" e que acusei "quem o fez" (presumo que o debate) "de não exibir a subserviência devida à religião". Depois lá estão as insinuações de que eu considero tal tema um tabu. Sim,um tabu. Não me lembro de ter escrito tais coisas, procurei mas não encontrei, mas que interessa isso?

Depois, fez-me descobrir que sou preconceituoso. Confesso que não entendi bem onde estão, de forma tão clara e evidente, esses preconceitos no tal texto, mas aceito de bom grado tal epíteto vindo de quem é tão comprovadamente desprovido deles. Confesso que cometi o dislate de utilizar maiúscula ao falar de Deus, mas não percebi bem porque é que veio à baila a guerra do Iraque, só pode ter sido para provar as mentiras de Blair, a juntar, com toda a certeza, e como cerejinha no bolo, às suas opiniões sobre religião. E, por fim, percebi que, para mim, "a religião é uma fatalidade que aflige inexoravelmente a humanidade e como tal não deve ser alvo de debates" e que chamei, a todos os ateus, "desumanos". Como é possível ter eu redigido tal coisa sem dar por isso? Há uma explicação, mas duvido que a Palmira a considere aceitável: obra do Demo, só pode. Pensei, um pouco ingenuamente, confesso, que o meu modesto texto se limitasse a ter lacunas e coisas mal explicadas, mas afinal está cheio de falácias; julguei que vagueasse num tom de dúvidas, de meios-termos, de questões e de reticências, porque o campo religioso suscita-me tudo isso e causa-me sempre estranheza pronunciar-me sobre um campo em que sou assumidamente um leigo. Vejo, agora, que não passo de um "beato", como me chama um entusiasta da Palmira, coisa interessante de se ler, não em si, mas pelo que revela. Ainda bem que há quem sobre estes assuntos tenha certezas e goste de cores contrastantes e de "prós e contras", o mundo é bom quando é simples, basta perguntar a um mullah, à Congregatio pro Doctrina Fidei ou ao BJP hindu. Se nenhum destes estiver à mão de semear, recorra-se à Palmira e invertam-se as polaridades, que a coisa fica ela-por-ela.

Como não me presto a desmentidos sobre o que escrevi ou deixei de escrever (porque os olhos servem para alguma coisa e cada um leia e entenda como quiser o que lá está - ou não está, precisamente), prefiro recentrar-me no que me parece essencial. E o essencial é que me continua, apesar de todos os irrefutáveis apontamentos da Palmira sobre os meus preconceitos e a minha predisposição para o tabu e para a censura, a surgir como completamente falacioso o ponto de partida do tal debate. Vamos esclarecer isto. O meu agnosticismo pode parecer bizarro a quem gosta de etiquetas, mas é genuíno: não sei se Deus existe; se existe, não me chegou ao entendimento, não O conheço e vivo razoavelmente feliz sem Ele. Posso ter uma crise mística amanhã, e certamente mudarei de opinião. Enquanto isso não ocorre, continuarei a emitir opinião terrena sobre os homens e os seus actos, independentemente em nome do quê ou de quem os cometem. Mas reconheço que o apelo religioso faz parte da natureza humana desde que o Homem é Homem. Mesmo as sociedades que aboliram oficialmente as religiões acabaram por criar ícones, símbolos e semi-deuses "laicos" e não consta que tivessem sido mais justas e prósperas. Não me compete, assim, julgar a religiosidade alheia, desde que não colida com o que se sabe (direitos humanos, liberdade individual, etc). E tenho a noção de que a religião é um poderoso booster da natureza humana. Mas, como Salazar, não discuto Deus, tal como não discuto futebol, grandes opções do plano ou títulos da dívida pública: são realidades a que sou alheio ou, pelo menos, assim o creio. Se um apelo místico leva as pessoas, individual ou colectivamente, a melhorarem as suas vidas, próprias e alheias, a serem felizes per si ou em busca de recompensa numa pós-vida, tanto melhor; se as leva no sentido oposto, estamos mal. Mas são os seus actos que estão sujeitos a escrutínio, não as suas motivações. Nada disto passa por impedir que as pessoas discutam o que quer que seja. Mas o tema do debate (e a sua embalagem televisiva "prós e contras") mantém-se absurdo, falacioso, enganador, redutor, simplista, básico: perguntar num "sim ou não" se a religião é uma força ao serviço do bem da Humanidade.

Duas razões essenciais (são um remix do que escrevi no tal post preconceituoso): 1. é extirpar artificialmente algo que não faz sentido de forma isolada, antes é inextrincável da complexidade da vivência humana, ontem como hoje; por outras palavras, é conceber uma trajectória da realidade humana isenta ou depurada de religião (pois só assim se pode avaliar se ela é uma força ao serviço do Bem ou não), o que é um exercício destituído de verosimilhança; 2. é um debate estéril porque propicia um "deve-e-haver" pendular e antagónico entre um lado e outro, vulgo bazucadas-para-o-quintal-do-vizinho, não favorecendo a reflexão, a dúvida e a questão mas sim a certeza, o rebate e a "prova", ainda que efémera e falaciosa (cá está), tudo em nome do formato televisivo, do "quem ganhou?".

Gostaria, aliás, de deixar claro que a mesma questão, substituindo "religião" por "ateísmo" resultava igualmente falaciosa e destituída de sentido e levantar-me-ia as maiores dúvidas. Posso adivinhar, evidentemente, é que um debate onde fosse feita tal formulação seria visto pela Palmira como um sinal de intolerância, quiçá mais um dedo acusador promovido por um qualquer pastor evangélico, e não como "uma análise desapaixonada e cuidadosa de todas as ideias, por mais repugnantes que nos sejam".

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