o tempo dos dióspiros
Não tenho qualquer lembrança da primeira vez que comi um dióspiro. Suponho que devia ser muito pequena, porque os dióspiros parecem feitos para comida de bebé: todas as outras frutas têm de ser esmagadas, reduzidas a puré, misturadas com leite, iogurte, sumo, qualquer coisa líquida. Maçãs, peras, bananas, mangas, kiwis, tudo a precisar de uma varinha mágica ou, na pior das hipóteses, um garfo (a minha mãe fazia-me papa de banana com laranja com um garfo, esmagando a banana no sumo de laranja); uvas, cerejas, romãs, nêsperas, impossível; figos, moles mas mesmo assim não tanto que não possam engasgar a criaturinha. Mas um dióspiro? Um dióspiro é perfeito. Uma polpa líquida, suave, sem grainhas nem outras armadilhas, derramada mal lhe perfuramos a pele, de um encarnado alaranjado e translúcido, para comer à colher, de comer à colher.
Na minha família, o outro doido dos dióspiros era o meu pai. Aposto que foi ele que me deu o primeiro a experimentar, “uma colherzinha pequenina para ver se ela gosta”, guardando o instantâneo da minha mímica deliciada e deliberando ali e para sempre ser meu ajuramentado fornecedor. Era ele que mos arranjava, num prato raso, sem a pele, e mos dava de surpresa, como um presente. E era ele que os apanhava, no recanto sombrio do pomar, ao lado do poço e do seu alto moinho de ferro, uma zona onde, avisava a minha mãe, costumava haver cobras (e um dia lá vi uma, muito grande: uma cobra de água, em volutas incansáveis, hipnóticas, que a tia Amélia, irmã do meu avô, me foi mostrar nos seus passinhos pequenos, no bico dos pés por causa dos saltos e das ervas, a mão suave e perfumada de unhas pintadas de rosa na minha, a voz meiga, pequenina, a contar uma história de cobras antes da cobra propriamente dita, espécie de trailer do filme -- e tão bom o trailer que é o que melhor recordo).
O meu pai levava um escadote daqueles de madeira, feito de troncos de árvores novas, que havia em todas as quintas (ainda haverá?) e que dançam enquanto os subimos, e um cesto de vime. Trazia-o cheio de dióspiros, assentes com muito cuidado num fundo de folhas de diospireiro para não rebentarem. Os dióspiros, como é sabido, estão sempre a ponto de rebentar e se não estiverem é porque não estão bons para comer; é preciso uma atenção dos diabos. Nada de sacos de plástico, nada de brusquidões: é fruta zen, para gestos de terapeuta oriental. Aliás, é fruta oriental. Parece que também crescem na América, mas são originários da China e Japão. Há várias espécies (ou seja, tipos) mas as de origem são aquilo a que se chama “adstringente” – têm um pico no meio da doçura que os faz tão especiais e que, claro, a produção em massa fez por eliminar, transformando a maioria dos dióspiros que se vendem por aí em água com açúcar (como todas as frutas industriais): uma boa porcaria e uma grandessíssima frustração, em suma.
O diospireiro do pomar, que durante tantos anos foi a minha única fonte de dióspiros, era dos verdadeiros, dos à séria, sem cá dessas mariquices edulcorantes. Creio que foi o meu avô que o plantou, mas não estou certa; era uma árvore muito grande e larga, sempre, na altura dos frutos, colonizada por abelhas e vespas enlouquecidas pelo seu perfume e doçura (como as compreendia). Achava o meu pai um herói por se aventurar naquele reino de cobras, insectos furiosos e vertigem mas mal começava o Verão seringava-o com a lenga-lenga do “já é tempo?”, como quem invoca um feitiço. Debalde: os dióspiros vinham sempre em Setembro-Outubro, nunca antes, e iam-se num instante, com as primeiras chuvadas. Umas semanas escassas, demasiado poucas, demasiado rápidas. Era um dos marcos de cada ano: o tempo dos dióspiros. Ainda hoje, mesmo se o velho diospireiro já não é, mesmo se agora, em vez do meu pai, é a senhora da mercearia que me responde quando pergunto: “Já é tempo?”, mesmo se já não sabem – como poderiam? – ao mesmo.
(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 12 de dezembro)