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Total Eclipse do solstício

Ao longo de toda a história, no hemisfério Norte, berço da civilização, se celebrou o solstício de Inverno em festividades e festivais sortidos.  As antigas culturas agrícolas concederam significado sagrado ao retorno da luz, ao nascimento de novas plantas e animais, a um novo ciclo de abundância. As suas festas tinham nomes, como Saturnália, Yule ou Lúcia, algumas delas celebradas até hoje.

 

Foi o significado especial que o solstício de Inverno desde sempre assumiu que levou a igreja cristã a designá-lo como o aniversário do seu deus incarnado. Com esta medida não só aculturou festividades profundamente enraizadas como aculturou ciclos divinos já muito bem estabelecidos nas religiões que a antecederam na sua esfera de influência: o nascimento do deus no solstício de Inverno, a sua morte, na cruz em muitos casos*, e ressurreição no equinócio da Primavera.

 

Os aniversários do Attis frísio, do Dionísio grego, do persa Mitra ou do Osíris egípcio, por exemplo, eram todos celebrados no solstício de Inverno, na sua maioria a 25 de Dezembro. Também apenas como exemplo, na mitologia frísia depois adoptada em Roma, a morte e ressureição ao 3º dia do deus Attis, nascido da virgem Nana, impregnada pelo fruto de uma amendoeira (na cosmogonia frísia, este fruto, a amêndoa, era o criador de todas coisas, visíveis e invísiveis), era celebrada num festival de alegria, Hilaria, cujo ponto alto, a 25 de Março data que se assumia ser o equinócio da Primavera, festejava a ressurreição de Attis.

 

Resumindo, o solstício é realmente a razão para a temporada.  A celebração do solstício de Inverno é uma herança cultural europeia, que foi aculturada pelo ramo cristão da nossa família global é um facto mas essa apropriação e consequente eclipse do solstício não os transforma em donos do Natal ou o que quer que queiram chamar às festas do midwinter. E é hora de nós não-teístas repormos a verdade: os festivais de Inverno foram uma característica dos calendários europeus muito antes do cristianismo, que, neste como em outros feriados/festivais sazonais, não pode reclamar a sua propriedade exclusiva. Muitas das tradições que associamos ao Natal datam de muitos anos antes do suposto Cristo, centenas ou mesmo milhares de anos. Tudo o que associamos ao Natal, prendas, festa, decorações, etc. remonta a esses antigos ritos pagãos e são património cultural de todos, não apenas dos que se irritam e carpem perseguição porque alguém resolve dizer Boas Festas ou Reason Greetings em Dezembro.

 

E este ano o solstício vai ser muito especial porque vamos ter um Eclipse Lunar Total na noite mais longa do ano, 20 de Dezembro, a primeira vez que tal acontece desde 1554. Bem, na noite mais longa do ano em alguns pontos do globo porque em Portugal o eclipse começará dia 21 às 6H33mn, 68 minutos depois será total e manter-se-à assim durante 73 minutos. E uns dias depois deste momento único, eu, ateia, e a minha família, com ateus e católicos, cumpriremos um momento que se repete todos os anos: uma reunião familiar em que cozinhamos, celebramos mais um midwinter ou Natal com uma lauta refeição, com tudo o que é habitual para esta época do ano, no verdadeiro espírito da época que não tem nada a ver com deuses ou deusas mas apenas com um ritual de celebração da vida na passagem das estações.

 

*Desde o Neolítico que a simbologia da cruz está presente em inúmeras mitologias. As cruzes solares, muito frequentes, representam o círculo do zodíaco (do grego zoidion que significa círculo animal) com uma cruz que marca as quatro estações. No centro era muitas vezes representado o Sol «crucificado». As cruzes solares simbolizavam assim a passagem das estações, a «crucificação» e morte do Sol e a sua ressureição no equinócio da Primavera.

Os vários deuses Sol não são os únicos deuses encontrados crucificados em stauros sortidos, nem os únicos a ressuscitar após o sacrifício, Osiris e Hórus no Egipto, Krishna na Índia, Quetazlcoatl no México, Hesus dos druidas, Attis na Frígia, são apenas alguns exemplos.

Outras figuras mitológicas, como Ixion, são muitas vezes representadas crucificadas (no caso de Ixion, numa roda que lembra uma cruz solar) e até Prometeu, que para além de ter concedido à humanidade o dom do fogo, foi o criador dos homens a partir de barro nalgumas versões da mitologia grega, é por vezes representado no monte Cáucaso acorrentado a um stauros e não a uma rocha.

 

O imperador Constantino, que viveu e morreu mitraista,  promoveu  vários elementos do seu culto pessoal ao Deus-Sol Mitra, por exemplo alterando o dia de culto do sabbatt judaico para o Domingo, o dia do Sol ou dies Domenicus, através do édito de 3 de Julho de 321, Sicut indignissimum, que entre outras coisas rezava: «Que todos os juízes, e todos os habitantes da cidade, e todos os mercadores e artífices descansem no venerável dia do Sol». E foi também Constantino o grande promotor da utilização no cristianismo da cruz - um dos símbolos mitológicos mais antigo e mais ubíquo -, que só aparece regularmente na arte cristã a partir do século V, sendo o peixe ou mesmo o lábaro os símbolos de eleição até aí.

De acordo com Eusébio de Cesareia, na noite antes da primeira das batalhas contra os exércitos de Maxêncio - que reclamava igualmente o título de Augustus -, Constantino pretendeu ter tido uma visão de uma enorme cruz contra o Sol, enquanto uma voz lhe dizia: «In Hoc Signo Vinces» (Com este símbolo vencerás) e mandou inscrever uma cruz nos escudos dos soldados. Antes da segunda batalha, a mesma voz ordenou-lhe substituir as águias imperiais dos escudos romanos. Constantino criou um novo padrão militar, o lábaro, basicamente as letras χρ - ou as iniciais em grego de Cristo - sobrepostas.

 

O mitraismo, uma religião milenar elitista e iniciática, herdeira da riquissima tradição religiosa persa expressa no Avesta, com inúmeros rituais muito semelhantes aos depois adoptados pelos cristãos, nomeadamente a cerimónia da missa ou antes a Myazda mitraica, uma partilha de carne e vinho sacrificiais conduzida pelo sacerdote mitraica, o Pater ou Papa, era muito popular entre os soldados romanos, como assinala o historiador romano Quintius Rufus no seu livro «História de Alexandre». Existiam em Roma centenas de Mithrae – os templos dedicados ao culto de Mitra. O que resta de um dos maiores Mithraeum em Roma pode ser visitado nos subterrâneos da Igreja de São Clemente, perto do Coliseu.

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