Não ao aproveitamento político dos arquivos da PIDE/DGS
André Guedes, Pessoas, Grupos, Lugares e Datas - 2007 - Museu das Comunicações
(imagem retirada daqui)
A revista Sábado tem ido ao Arquivo da PIDE/DGS na Torre do Tombo consultar os ficheiros dos candidatos à Presidência da República, nomeadamente de Cavaco Silva e Manuel Alegre. Ou seja, 36 anos depois da extinção da polícia política do regime ditatorial de Salazar e Caetano, os arquivos da PIDE/DGS estão a servir como arma de arremesso político. Desde 25 de Abril de 1974 que se temia que isso pudesse acontecer, bem como se receava que os arquivos servissem uma nova polícia política eventualmente criada.
Para os esquecidos e os ignorantes do nosso passado recente, lembro um pouco a história polémica desses arquivos. O golpe militar de 25 de Abril de 1974, em Portugal, abriu a chamada uma nova vaga dos processos de democratização da Europa do Sul, dando lugar a uma crise revolucionária de Estado, em que ocorreu, em simultâneo, a democratização e a descolonização. Foi uma transição para a democracia por ruptura, que provocou uma forte mobilização anti-ditatorial, determinante para a imediata dissolução das instituições conotadas com o regime deposto.
Na primeira linha desse desmantelamento, esteve, por exigência dos elementos que se tinham oposto à ditadura, o aparelho repressivo - a Polícia Internacional e de Defesa do Estado/Direcção-Geral de Segurança (PIDE/DGS) -, que foi desde logo objecto da revindicação da criminalização dos seus agentes, funcionários e informadores. Ligada à questão da criminalização esteve também a discussão sobre o destino dos arquivos dessa mesma polícia política.
No final de Junho de 1974, foi criada uma Comissão Liquidatária da PIDE/DGS e, para coordenar a extinção da ex-polícia política e instruir os processos-crime de inculpação dos membros da mesma, foi formado, dias depois, o Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e da Legião Portuguesa (SCE da PIDE/DGS e LP). Foi à guarda deste SCE, inicialmente sob tutela do Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (EMGFA) e depois da Junta de Salvação Nacional (JSN), que ficaram os arquivos dessa polícia política.
Começaram desde logo as denúncias de manipulação e apropriação dos mesmos para objectivos próprios. Ao mesmo tempo temia-se que os arquivos da antiga DGS pudessem servir à criação de uma nova polícia política e chegou mesmo a ser discutida informalmente a destruição dos mesmos, o que felizmente não aconteceu. Em 1984, ano em que foram comemorados os 10 anos do 25 de Abril, houve uma alteração à Constituição, sendo extinto o Conselho da Revolução e decidida a transferência dos arquivos da PIDE/DGS para a Assembleia da República.
Por decisão do Parlamento português, os arquivos foram, por seu turno, transferidos, no início dos anos noventa do século XX, para o Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo – Arquivo Nacional (Lei 4/91, de 17 de Janeiro), no mesmo ano de 1991 em que foi extinto o SCE da PIDE/DGS e da LP. Em 1994, ano em que se comemorou o vigésimo aniversário do 25 de Abril, os arquivos passaram a poder ser consultados, conforme estabeleceu o Decreto-Lei nº 16/93, de 23 de Janeiro do ano anterior, com algumas restrições:
1 - apenas o próprio, ou alguém por ele autorizado, pode ter acesso aos documentos nominativos que contenham dados pessoais;
2 – a) não são comunicáveis os documentos que contenham dados pessoais de carácter judicial, policial ou clínico, bem como os que contenham dados pessoais que não sejam públicos, ou de qualquer índole que possa afectar a segurança das pessoas, a sua honra ou intimidade da sua vida privada e familiar e a sua própria imagem,
- b) salvo se os dados pessoais puderem ser expurgados do documento que os contêm sem perigo de fácil identificação, se houver consentimento unânime dos titulares dos interesses legítimos a salvaguardar, ou desde que decorridos 50 anos sobre a data da morte da pessoa a que respeitam os documentos, ou, não sendo esta data conhecida, decorridos 75 anos sobre a data dos documentos.
3 - Os dados sensíveis respeitantes a pessoas colectivas gozam de protecção prevista no número anterior, sendo comunicáveis decorridos 50 anos sobre a data da extinção da pessoa colectiva, caso a lei não determine prazo mais curto.
O arquivo da PIDE/DGS é constituído pela documentação produzida pela própria PIDE/DGS, pela das polícias políticas que a antecederam, desde 1919, pela dos Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Angola e Moçambique, extintos em 1975, com a independência, e ainda pela do SCE da PIDE/DGS e LP, extinto em 1991, abarcando um período cronológico de mais de meio século. Esta documentação é composta por mais de seis milhões de fichas, 500 livros e 20.000 caixas repletas de processos. Todos os processos são sujeitos a expurgo, incluindo os solicitados pelos próprios.
Os arquivos da PIDE/DGS incluem, como os de qualquer polícia política, documentação muito sensível, não só sobre a vida privada das pessoas, como sobre a vida política dos opositores à ditadura. É um arquivo que contém muitos elementos falsos, não só porque, nos interrogatórios que a polícia política levada a cabo através da utilização de torturas, esta era negada pela PIDE/DGS, como os presos políticos, no combate desigual que travavam contra esta, tinham o objectivo de esconder ou alterar o que faziam.
Por isso - e sei por experiência própria -, a utilização dos arquivos para efeitos académicos deve ser feito com extremo cuidado, devendo a documentação ser permanentemente cotejada. Para o historiador, é evidente e óbvio que utilizar estes arquivos não pode nem deve servir qualquer objectivo político presente. Este tem, como o médico ou o advogado, a sua própria deontologia profissional e se o fizer é censurado pelos seus pares como pelas pessoas em geral. Da mesma forma acontece com os jornalistas, embora o que estes escrevem tenha habitualmente resultados e consequências sobre o presente.
Há uns anos, soube-se que membros de um governo de um país - não de Portugal -, estariam a consultar os arquivos da PIDE/DGS para exercer chantagem política sobre elementos outrora presos. Para acabar com tal ignomínia – pois de uma se trata – foi sugerido que a consulta dos arquivos ficasse condicionada. Ou seja, só alguns (e historiadores) os poderiam consultar. Ergui-me, com outros, contra essa proposta, até porque colocava sempre a questão de quem decidiria então quem poderia ou não consultá-los.
Quando a revista Sábado começou a publicar elementos dos arquivos da PIDE/DGS, nas vésperas de eleições presidenciais, eu estava no Brasil, precisamente num congresso sobre abertura dos arquivos da ditadura que vigorou nesse país, entre 1964 e 1988. Tinha havido recentemente eleições presidenciais, estalando então uma polémica, com protestos (e até demissões) de historiadores, devido ao facto de o Arquivo Nacional/Memórias Reveladas ter temporariamente fechado o acesso à consulta dos arquivos referentes aos candidatos, depois de alguma imprensa utilizar o ficheiro policial referente a Dilma Rousseff.
Como se sabe, a actual Presidenta da República do Brasil pertenceu a uma organização de luta armada contra a ditadura, sendo presa e selvaticamente torturada pelos militares. A utilização da sua ficha policial serviu assim de arma de arremesso político e, por isso, a questão da abertura dos arquivos e de quem a eles deveria aceder foi alvo de aberta discussão.
Sou claramente defensora da abertura dos arquivos, evidentemente com as restrições motivadas pela defesa da intimidade, privacidade e honra das pessoas. Não vou entrar aqui na concretização destas restrições, que são elas próprias polémicas, até porque levantam sempre a questão de quem as deve levar a cabo. Mas, por ser defensora da abertura dos arquivos, coloco a questão ética da manipulação e aproveitamento político actual de tais arquivos. E só posso dizer que considero que, não sendo correcto esse aproveitamento, ele não deve ser feito. E mais, deve ser censurado.