o sexo dos wikileaks
A semana passada mencionei a palavra Wikileaks. Usei o feminino - pensava numa organização, numa fonte - mas quem reviu o texto alterou o género para masculino, presumo que para denominar o site. Ora o sucedido não só demonstra como se formata o discurso (e portanto a percepção) sem se admitir que, como é o caso, não sabemos bem do que estamos a falar, como está longe de ser um detalhe. Quando consideramos que Wikileaks é um site, assumimos que se trata de uma espécie de plataforma de recepção de conteúdos, um lugar sem, digamos, espessura; falar de Wikileaks como organização é designar uma estrutura, um conjunto de pessoas com história, hierarquia, perspectiva, propósitos e financiamento - que importa identificar e escrutinar. Do nosso entendimento do que é isso de Wikileaks depende pois, em português, o "sexo" que lhe conferimos. E não é decerto pequena ironia que o sexo se tenha transformado, ao longo do último mês, num dos assuntos Wikileaks, a propósito das acusações de duas suecas ao dirigente/cara da organização/site, o australiano Julian Assange. Como se o que estivesse em causa fosse, mais do que escrutinar que objectivos tem este homem e a sua organização, se se trata de uma boa ou de uma má pessoa. E aqui reside outra das ironias desta história: é como se, ao mesmo tempo que se discute se a transparência total (seja lá isso o que for) é ou não um "bem", se fosse incapaz de admitir a espessura essencial das coisas (e das pessoas). Só assim se explica que os apologistas mais furiosos de Assange tenham certificado que as mulheres que o acusam têm ligações à CIA (através de um intrincado de "relações" hilariante, que inclui o facto de uma delas ter criticado Fidel) e pessoas que habitualmente se definem como feministas recusem ver violência na imposição de uma relação sexual sem preservativo: o herói não pode ter mácula. A inversa, claro, é verdadeira: mesmo que se viesse a provar aquilo de que acusam Assange isso não qualificaria o material que disponibiliza através do site que gere, nem sequer os seus objectivos nessa disponibilização: um mesmo indivíduo pode defender a democracia total e o escrutínio absoluto (e portanto a irrisão?) de "todos o poderes" e, no contexto de uma relação sexual, violar a vontade de outro sem que isso determine o valor daquele seu contributo para "melhorar o mundo". Claro que quando vemos o advogado sueco de Assange reagir à publicação, pelo The Guardian, de documentos policiais inéditos relativos ao processo em que o australiano é acusado com uma queixa formal à polícia no sentido de esta investigar como "material tão sensível foi passado [leaked, no original] à imprensa" e acrescentar "não gosto da ideia de que Julian seja colocado na situação de ser julgado nos media" temos a tentação de sentenciar: justiça poética. Mas, precisamente, não é de justiça que se trata; e precisamos de saber mais, muito mais, para saber se é sequer justo. (publicado na sexta, 24 de dezembro, no dn)

