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Costa do Marfim à beira da guerra civil

Continua o crescendo de violência na Costa do Marfim com os partidários de Laurent Gbagbo a ameaçarem não só as forças da ONU como Alassane Ouattara, protegido pela Missão da ONU. Blé Gudé, o líder dos Jovens Patriotas, organização que apoia o presidente derrotado, ameaçou tomar de assalto o hotel que alberga Ouattara: «A partir de 01 de Janeiro, eu, Charles Blé Gudé, e os jovens da Costa do Marfim vamos libertar o Golf Hotel com as mãos nuas», disse Blé Gudé,ministro da Juventude de Gbagbo, aos milhares de militantes que o ouviam em Yopugon, um bairro de Abidjan.

 

Alain Le Roy, que chefia as operações de manutenção de paz das Nações Unidas, denunciou os apelos ao ódio que estão a ser feitos pela facção Gbagbo na RTI, a televisão pública. «As declarações que ouvimos na televisão estatal marfinense preocupam-nos e chocam-nos, porque instigam, claramente, a população a virar-se contra a Missão da ONU na Costa do Marfim, instigam ao ódio», afirmou Le Roy. O recente ataque a um comboio da ONU segundo Le Roy, «é evidentemente uma das consequências directas do ódio promovido contra a ONUCI, via RTI».

 

A retórica inflamatória dos apoiantes de Gbagbo está a dividir o país, anos após outro conflito muito semelhante ter resultado numa guerra civil entre o norte rebelde, maioritariamente muçulmano, e o sul, predominantemente cristão e enclave do governo, que terminou em 2007 num estádio de futebol, com a mediação de Didier Drogba. Youssoufou Bamba, o recém nomeado embaixador da Costa do Marfim na ONU, avisou que a recusa de Laurent Gbagbo em deixar o poder que perdeu nas últimas eleições, está a deixar o país à beira de outra guerra civil. De acordo com Bamba, nomeado por Alassane Ouattara,  «é preciso fazer qualquer coisa», pois está-se «a dois dedos de um genocídio».

 

Para se perceber esta menção a genocídio são necessários alguns vislumbres do  complicado xadrez étnico, religioso e político na Costa do Marfim. Laurent Gbagbo, 65 anos, antigo professor de história, está no poder há uma década, apesar do mandato que o elegeu em 2000 ser de apenas cinco anos. Cristão, foi opositor histórico de Felix Houphouët-Boigny, o pai da independência desta antiga colónia francesa que foi presidente do país desde a independência em 1960 até à morte em 1993 e o transformou no principal produtor mundial de cacau. Gbagbo pertence à etnia Bété, um sub-grupo dos Kru, dominantes no sul do país, e rivais dos muçulmanos Dioula e dos Baoulé, etnia de Houphouët-Boigny e do seu sucessor, Henri Konan Bédié.

 

Alassane Dramane Ouattara, que fará 69 anos no próximo dia 1, é muçulmano e pertence à etnia Dioula, uma das duas principais etnias nortenhas. Doutorado em Economia pela universidade da Pensilvânia, foi economista do FMI e era primeiro-ministro do governo de Felix Houphouêt-Boigny aquando da morte do presidente. Suplantado na sucessão pelo presidente da assembleia nacional, Bédié, Ouattara apresentou a demissão e regressou ao FMI em Washington onde assumiu o cargo de director-geral adjunto. O governo provisório de Bédié aprovou uma lei eleitoral, depois parcialmente consolidada na constituição, que restringia a admissibilidade de candidatos presidenciais a filhos de marfinenses que tivessem residido na Costa do Marfim nos últimos 5 anos, o que impediu Ouattara de concorrer nas eleições de 1995, em particular depois de um tribunal ter decretado que a sua mãe era do Burkina Faso.

 

Bédié herdou uma situação económica complicada devida à queda dos preços do cacau o que, conjugado com corrupção generalizada, obrigou o novo presidente a pedir ajuda ao FMI. A crise fez piorar ainda mais as condições de vida da população que começou a protestar os desmandos governamentais, algo que não fizera durante as décadas de prosperidade em que aceitara a acumulação de uma enorme fortuna pessoal por Houphouët-Boigny e os seus delírios de grandeza, como a construção, nos anos 80, da maior igreja do mundo, a basílica de Notre-Dame de la Paix de Yamoussoukro, que duplicou a dívida externa da Costa do Marfim.

 

A tensão no país aumentou e em 1999 o governo de Bédié foi derrubado por um golpe de Estado militar. O general na reforma Robert Guéï foi convidado a liderar a junta que governou o país até às eleições de Outubro de 2000, que elegeram Laurent Gbagbo. Guéï não aceitou o resultado e proclamou-se presidente da Costa do Marfim, levando ao aumento da violência e do número de mortos entre a população civil. Em 25 de Outubro, Guéï abandonou o cargo e  Laurent Gbagbo assumiu o poder.

 

Gbagbo criou um Comité de Mediação para a Reconciliação Nacional, com a presença de representantes de partidos políticos e antigos presidentes como Guéï e Bédié,  e dignitários católicos e muçulmanos. No entanto, esta iniciativa não diminuiu as tensões criadas por umas eleições que dividiram o país já que muitos candidatos tinham sido impedidos de concorrer, incluindo os líderes dos principais partidos da oposição, representantes das principais etnias rivais dos Bété: Bédié, presidente do partido que fora de Houphouët-Boigny, o PDCI-RDA  Parti Démocratique de la Côte d'Ivoire — Rassemblement Démocratique Africain, e Alassane Dramane Ouattara, líder da União dos Republicanos. Em 2002, o crescendo de tensão culminou numa guerra civil. Em 2010 a situação repete-se. Infelizmente.

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