Campanha 10:23 e ciências ocultas
Sábado pela manhãzinha esta vossa escriba reuniu-se no jardim do Principe Real com um grupo de gente simpática e empenhada em informar o público sobre o que é de facto a homeopatetice. O lema da campanha, 1023, honra a constante que tem o nome de Lorenzo Romano Amedeo Carlo Avogadro (1776 — 1856), o físico italiano que distinguiu átomos de moléculas e que propôs que «iguais volumes de todos os gases, nas mesmas condições físicas, contêm o mesmo número de partículas». A constante de Avogadro, 6, 022X1023, é o número de átomos ou moléculas existente num mole de uma determinada espécie química. O seu significado nesta campanha é muito simples: não se pode diluir nada mais vezes que o número de moléculas inicial porque simplesmente não há moléculas que cheguem. Se eu tiver 100 pães para distribuir só posso dar um pão a 100 pessoas, não consigo alimentar os cerca de 7 mil milhões, 7x109, de habitantes da Terra, mesmo que acredite que só o aroma do pão é suficiente para encher a barriga porque nem o cheiro chega a todos. As moléculas são como os pães: a não ser para quem acredite em milagres, não há fenómeno de multiplicação de moléculas.
Por isso, foi sem qualquer receio que engoli uma embalagem inteirinha de Nux vomica 10CH porque a uma diluição 1 para 1020 ou 1 para 100 triliões (dos europeus, não americanos) do extracto ou tintura-mãe de Strychnos nux-vomica L., também conhecida como noz-vómica, noz-vomitória ou fava-de-santo-inácio, as coisas simpáticas que contém, em particular alcalóides como a estricnina, que dispensa apresentações, e a vomicina, há muitas sacudidelas que não existem. Ou seja, limitei-me a mastigar umas bolinhas de açúcar e lactose cujo único efeito, secundário e primário, foi sede.
O único receio que senti em toda a estória adveio da conversa que mantive com um homeopateta que apareceu a espiar a acção e a tentar capitalizar com o evento enfiando a uma das jornalistas presentes, do Jornal de Notícias, um rol de mentiras abismais em defesa da sua banha da cobra. E senti receio por várias razões, a principal das quais pela constatação da profunda ignorância do senhor que se apresentou, abusivamente, como licenciado em medicina tradicional chinesa por uma "universidade" a operar em Portugal.
E digo abusivamente porque, de acordo com o RJIES, Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, números 3 e 4 do artigo 10º, as denominações "universidade, faculdade, instituto superior, instituto universitário, instituto politécnico e escola superior" são exclusivo das instituições de Ensino Superior registadas no ministério da tutela e são apenas estas instituições que podem conferir títulos ou graus de licenciatura, mestrado ou doutoramento. No entanto, uma pesquisa rápida indica que há pelo menos duas destas a operar em Portugal, a Escola Superior de Medicina Tradicional Chinesa de Lisboa (ESMTC), com parceria com uma universidade de banha da cobra por correspondência, e a Universidade de Medicina Chinesa, as duas oferecendo licenciaturas e a última arrogando-se mesmo a dar doutoramentos - embora o ministério da ciência, tecnologia e ensino superior não reconheça nem as escolas nem os pseudo graus que conferem. Ou seja, há pelo menos duas destas instituições que violam a lei vendendo gato por lebre - e não percebo porque razão o MCTES não investiga a coisa, estou certa que haverá mais.
O senhor que apareceu no Príncipe Real acumula assim várias banhas da cobra o que não contribuiu em nada para melhorar o seu conhecimento. A conversa iniciou-se quando me saltou a tampa ao ouvi-lo explicar com um ar muito condescendente que a Organização Mundial de Saúde recomenda as homeopatetices, o que é completamente falso. E só debitou falácias sortidas, ataques à medicina ou farmacologia, mentiras descaradas (e muito mal amanhadas, nomeadamente aquela que parece estar na moda entre os homeopatetas desde o advento da campanha 1023, a de que um "cientista" alemão descobriu que o número de Avogadro está "errado", sigh*) tudo temperado com uma demonstração abissal de ignorância mesmo em relação às charlatanices em que se reclamou «licenciado», nomeadamente não conseguiu explicar porque cargas de água, de acordo com a tal lei dos similares homeopateta, uma canjita ou um arrozito de pato não nos põe com arrepios de febre se a sua versão infinita e impossivelmente diluida é suposta "curar" os sintomas da gripe.
Criticar a medicina e acusar quem os critique de estar a soldo da grande Pharma pode ser uma táctica comercial muito inteligente para as homeopatetices, porque apela a todos os que tiveram uma qualquer má experiência médica ou que se indignam com os preços elevados de alguns medicamentos e querem "castigar" as farmacêuticas. Mas é muito mau para a sociedade como um todo porque exponencia algo que é cada vez mais preocupante: a confusão que o público em geral faz entre facto e opinião. Pode-se ter uma má opinião sobre as grandes farmacêuticas ou acerca da sobre medicalização do quotidiano mas essa opinião não deve ser confundida com o facto de que só há uma espécie de medicamentos, os que, comprovada e testadamente, funcionam. A homeopatetice dever-se-ia sujeitar (e aceitar) os testes a que, obrigatoriamente, todos os outros estão sujeitos. E estes testes há muito que indicam que o efeito das homeopatetices são indiscerníveis do efeito placebo.
De igual forma, os homeopatetas podem inventar inexistentes "evidências" científicas livremente para um público insuspeito e cientificamente analfabeto, podem mesmo inventar "teorias" mirabolantes debitadas com palavras tomadas emprestadas da mesma ciência que malignam - e de que não percebem raspas, é demasiado penoso ler o artigo que linkei - mas o prestígio científico que tanto anseiam para a sua banha da cobra só pode ser obtido se aceitarem reger o que o homeopateta de serviço ao Príncipe Real clamava ser "investigação científica" pelas regras e método da ciência.
E não podem clamar que a sua treta é científica e depois afirmarem que um dos métodos de diagnóstico utilizados, pelo menos pelo tal homeopateta, é a leitura das "auras" dos pacientes. Ou que na base da homeopatetice está a sucussão que torna a água radioactiva porque com as sacudidelas da água «o gás (? mas qual gás, o senhor saberá o que é um gás?) vai-se rarefazendo até um ponto em que se torna um hiper-protão (nem faço ideia o que seja esta coisa, pela conversa parece que o senhor acha que a sucussão é q.b para acrescentar dois neutrões ao núcleo de hidrogénio formando trítio). O hiper-protão também chamado de Buraco Branco onde há ausência de Matéria (mas qual ausência de matéria, se é um protão, ou deuterão ou tritião tem massa), emite radiação de Trítio (tipo β(beta)) (mas o homem é completamente parvo? ao menos podia ter googlado um bocadinho, não há radiação de trítio, o trítio, como outros isótopos radioactivos, decai num processo chamado decaimento beta emitindo um electrão, neste contexto chamado partícula beta (e também um antineutrino)».
Eu tenho uma proposta: se têm tanta fixação com o termo ciência, a única designação possível para a vossa coisa é a de ciências ocultas. Assumam-no. Pelo menos é mais honesto e poupa-vos ao ridículo de inventarem tretas como esta.
*Formalmente, a constante de Avogadro é definida como o número de átomos em 12 gramas (0,012 kg) de carbono-12. Como deveria ser óbvio, este número vai sendo refinado à medida que a ciência avança, ou seja, vão sendo acrescentadas casas decimais ao 6, 6.022 141 79 na última revisão, mas o expoente não mexe há já uns anitos muito largos.