fundamentados indícios de total incompetência e sobrenatural estupidez
tudo o que paula torres de carvalho, num trabalho notável, apurou sobre o caso de augusta martinho parece mentira. a vizinha foi à polícia para dizer que não via a vizinha há 3 meses: disseram-lhe que 'só a família pode fazer queixa' (e se não houver família? e se a família não pudesse ralar-se menos ou se o desaparecimento se devesse à família?) mas mandaram uma patrulha ao prédio onde, dizem, 'não viram nada de estranho' (não havia letreiros a dizer 'atenção, pessoa morta dentro de casa'). um familiar (primo) fez queixa mas na psp; como a gnr é que tinha a competência (piada, sim) territorial, a psp ficou quatro meses com o caso (a investigar? juram?) até o passar à gnr. o caso passou para o tribunal. e por lá ficou.
diz o relações públicas da psp que 'se não existirem fundamentados indícios de que o desaparecido está no interior da residência correndo risco de vida (art.º 24 da Constituição), não pode a Polícia promover per si, a abertura da residência'. ora bem: uma senhora de 87 anos desaparece sem deixar rasto; não levanta os cheques da segurança social; não está nos hospitais nem na morgue (se é que procuraram saber); tem um cão que nunca mais é visto também (se calhar vocês estão-se nas tintas para isto mas dá-se o caso de eu gostar muito de cães e além disso achar que o desaparecimento do cão e a ausência de barulho de cão vindo da casa era um indício de que algo não estava bem); vizinhos e família apresentam queixa e demonstram preocupação; mas não há fundamentados indícios de que a senhora possa estar no interior da residência, a precisar de ajuda ou morta. aliás, é uma coisa que nunca acontece, as pessoas adoecerem, serem assaltadas, suicidarem-se, morrerem dentro das respectivas residências. e quando o fazem ligam sempre antes para a polícia, para que a polícia fique com 'fundamentados indícios'. ou põem uma bandeirinha na janela, com uma seta: 'corpo de bruços na cozinha, é por aqui'.
aliás, é exactamente este tipo de pruridos com os direitos constitucionais que as polícias costumam demonstrar quando vão a bairros ditos 'problemáticos' e metem dentro portas a eito: há sempre, e em cada caso, 'fundamentados indícios', em papel selado e cheio de carimbos, de actividade criminosa dentro daquelas residências.
como tudo foi sobremaneira segundo as normas, a lei e o bom senso, mais a constituição, com certeza não haverá problema algum em termos (nós, o povo) acesso ao processo (ou processos, já que meteu tanta gente, tanta instituição) que resultou das queixas da vizinha e do primo de augusta martinho, mais à papelada decerto gerada na segurança social, mais à do fisco, enfim, a tudo, incluindo, se possível, dados sobre as contas de telefone, água, luz, gás, televisão (se havia). para podermos apreciar o excelente trabalho do nosso sistema policial e do douto ministério público e da inimitável segurança social e todas as incansáveis diligências empreendidas em prol da resolução do desaparecimento de augusta martinho -- em todo o seu esplendor.
quanto aos que a dada altura dirão -- há sempre alguém que diz isso -- 'então, para que é que isso adianta, a senhora morreu e nada a podia ter salvado', um desenho.