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elogios funéreos

Quando morre alguém e é alguém de quem é suposto falar-se – em texto, entrevista, TV, rádio, seja o que for – sabemos que se vai assistir a uma beatificação ainda mais acelerada que a de João Paulo II. Em minutos, seja quem for é coroado com todas as qualidades humanas que vêm à lembrança, sendo que de um modo geral as que vêm à lembrança são coisas como “era uma pessoa extraordinária”; “amava a vida”; “era amigo do seu amigo”.

 

Ora eu confesso: se quase todas as coisas grandiloquentes e elogiosas que se dizem dos mortos surgem como manifesta falta de assunto, funcionando como espécie de reverso do que se pretende, como quem diz “Não sei que raio hei-de inventar sobre este gajo, vou ali aos clichés que é um encanto”, aquela do “amigo do seu amigo” é talvez o mais estapafúrdio encómio que se pode fazer a alguém. Não só porque é uma frase feia de tão feita, possidónia de tão repetida e oca e rimada, mas sobretudo porque é absolutamente paradoxal. Por que raio havia alguém de ser inimigo do seu amigo? Tem algum jeito? E é alguma coisa de especial, alguém ser amigo dos amigos? Dá ideia até que é mandatório, não?

 

Pensemos por um momento nisto: peculiar, assinalável e até de algum modo – o modo cristão de dar a outra face ou, pelo contrário, o wildeano da pirueta irónica (d’après “devemos escolher os nossos amigos pelo aspecto e os nossos inimigos pela inteligência; nunca somos demasiado cuidadosos a escolher os nossos inimigos”) – deslumbrante seria dizer “era amigo do seu inimigo”. Isso sim, caramba. Agora “amigo do seu amigo”? É mais ou menos o mesmo que dizer “não era um canalha, um bandalho, um energúmeno daqueles que maltratam e desprezam as pessoas que gostam deles e que os cumulam de favores,  amabilidades e meiguice, daqueles com quem não se pode contar para nada, um filho da puta [poder-se-á escrever isto na Notícias Magazine?], enfim”. Diabos me levem se isto é elogiar alguém.

 

Por que será, então, que ocorre a alguém achar que retribuir amizade é uma coisa que se deva mencionar como admirável? Dentro da mesma linha: “Era um bom pai”. Ou “era um bom filho/marido/colega, etc. Porquê, é suposto ser-se mau pai? E se se foi mau pai, alguém vai dizer, tipo, era um pai miserável, mas era o pai possível, o pai que havia? “Amava a vida” também é um clássico. Parem as máquinas, exclusivo mundial: de um modo geral, todos gostamos de viver. Mesmo quando andamos para aí de monco caído, a arrastar-nos e a emborcar gins e a fumar em cadeia como se não houvesse amanhã, preferimos de longe estar vivos a estar mortos. É, digamos, constitucional – e damos por isso de forma retumbante mal nos cheira que podemos estar em risco de ir desta para pior, ou seja, que a mortalidade não é uma coisa que sucede só aos outros e com a qual temos de lidar de vez em quando.

 

Sim, eu sei: não sabemos o que dizer perante a morte. E quanto mais quem morre nos seja próximo menos conseguimos dizer. Talvez, então, experimentar dizer o menos possível. Talvez permitir-nos o silêncio – e que melhor homenagem que essa, que maior dignidade que o vácuo das palavras perante a ausência definitiva? Não significa isto que não é possível falar, fazer justiça, tentar dizer aquela pessoa e a falta que faz. Mas é tão raro que o que se diz escape às claras em castelo de louvores sem espessura nem alma, à cartilha mecanizada das frases de pacotilha, ao automático do que “é suposto”. E, porque é suposto “dizer umas palavras”, dizem-se as do costume.

 

“Ou vou eu ou vai este papel de parede”, diz a lenda que terá sido a última frase de Oscar Wilde, no seu leito de morte num hotel rasca de França. Verdade ou mentira, permite que sobre ele se diga que, se pereceu na luta mortal com a pieguice, a banalidade e o mau gosto, nem no fim se rendeu. E se conseguimos imaginar que alguém, ao morrer, mantenha assim altas as traves do telhado, devemos poder, sobre os mortos e pelos mortos, ser capazes de tentar imitá-lo.

 

(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 13 de fevereiro)

 

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