A ignorância também ofende
À Direcção da Revista da Ordem dos Médicos
Exmos Senhores
Li no último número da Revista da Ordem dos Médicos (ROM) um artigo de opinião assinado por William Clode que me suscitou inúmeras questões de ordem científica - e ético-deontológica, já agora. Para argumentar e contrapor ideias é necessário que elas existam e que não sejam um emaranhado de pensamentos traduzidos por uma amálgama de palavras. Como levar a sério alguém que inicia um escrito pretensamente sustentado cientificamente a falar do "sexto sentido feminino"? Assim sendo só posso ignorar o autor do escrito, dar-lhe a credibilidade de um professor Karamba (ou lá como é que o senhor se chama) e lamentá-lo por desconhecer os prazeres do sexo anal e oral nas suas diferentes modalidades. Perante as questões levantadas pela publicação do referido texto e a realidade dos factos, o interlocutor (sério) da discussão (séria) só pode ser a direcção da Revista, tanto mais que estamos no início do mandato de uma nova direcção da Ordem dos Médicos, com um novo bastonário.
Avisa a ROM, logo no seu início, que os artigos de opinião são da exclusiva responsabilidade dos seus autores e respondeu Diamantino Cabanas, na qualidade de assessor de imprensa da OM, ao jornal Público de 22 de Fevereiro que "a revista da ordem é uma publicação "plural e abrangente, que publica as opiniões que lhe chegam dos médicos" (...). Diferentes visões devem ser divulgadas, diz, "desde que não ofendam ninguém"."
Pois bem, vamos por partes. Um artigo de opinião, como o seu nome indica, é um género textual argumentativo cujo objectivo é defender ou advogar uma causa ou opinião. Apresenta-se geralmente sob a forma de dissertação, onde o autor expõe o seu ponto de vista, sustentando-o com base em factos. À sombra da "opinião" não se pode aldrabar nem fazer pseudociência. Não há, ao longo do referido "artigo", um único facto sustentado no que à homossexualidade diz respeito, uma única sustentação bibliográfica apesar de todo o texto tomar a forma de uma reflexão científica. Mas mais importante que isso, naquele achismo pseudocientífico que demorou mais de um ano a ser parido, apresentado sob a falsa capa de opinião já que de outro modo (espera-se!) nunca seria publicado, há objectivamente ofensas a terceiros, e este é um dos pontos que implicam a direcção da revista. Imaginem que me dava, assim de repente, para teorizar e dissertar sobre "O daltonismo das falhas cognitivas: um estudo de caso num médico reformado", onde discorria sobre as supostas bizarrias comportamentais e a coprolália do sujeito e que enviava o artigalho para publicação na ROM. O que acontecia, era publicado já de seguida? Pois é, há várias formas de ofender, e a ignorância é uma delas.
Outro ponto que me parece importante tem que ver com o tipo de publicação que é a ROM e como ela própria se define. Pelo facto de ser uma revista não científica, generalista, "plural e abrangente", a sua direcção não se pode esquecer que é pertença de uma ordem profissional particular, com responsabilidades clínicas e científicas. Seria publicável, no espaço de opinião da ROM, um artigo que advogasse a paragem de toda e qualquer terapêutica médica no tratamento da doença oncológica e, em sua substituição, o recurso à ingestão da primeira urina da manhã do próprio doente, por exemplo? Quero acreditar que não.
A liberdade de expressão implica responsabilidade e a ausência de censura não desresponsabiliza as direcções das publicações daquilo que nelas é publicado, tão pouco as desobriga de razoabilidade. Não podia deixar de expressar o meu repúdio e a minha crítica, até porque julgo que vale a pena pensar um pouco sobre o sucedido.
Sem mais de momento despeço-me enviando cumprimentos,
Ana Matos Pires
Adenda: Carta aberta da ILGA sobre o mesmo assunto.