24.02.2011
Uma multidão imensa, no que parece ser uma praça junto ao mar. Crianças, mulheres, homens, soldados. Riem, fazem sinal de vitória. Gritam em árabe. E "CNN, CNN". Estão virados para o terraço de um prédio onde Ben Wedeman, da primeira equipa de TV a chegar a Bengazi, narra o que lhe sucedeu ao entrar na cidade que simboliza a revolta contra Kadhafi. "Senti-me como um americano a entrar em Paris. As pessoas saudavam-nos, agarravam-nos as mãos, agradeciam-nos, atiravam doces para dentro do jipe. Não estou certo de estar à altura disto." Esmagador, resume.
Esmagador, sim. Dez anos após o 11 de Setembro, a "rua árabe", que povoa os nossos mais assustadores pesadelos e cremos ser o nosso pior inimigo; que, tememos, pode deitar a perder, com o seu atavismo, as esperanças das duas revoluções já vitoriosas, a da Tunísia e a do Egipto, saúda um americano como libertador. É um jornalista, certo, não um soldado - e, no twitter, os líbios que mantêm viva a torrente de informação asseguram que é a imposição de uma no fly zone que querem da comunidade internacional, para assegurar que Kadhafi não pode mandar bombardear os insurrectos, e não uma invasão, mesmo que de tropas da ONU. "Se alguém sonha em transformar o meu país noutro Iraque, que deus os ajude", diz @ChangeInLibya, um tuiteiro baseado em Tripoli.
Sim, Wedeman e equipa são jornalistas. Mas são americanos. E não é possível negar a importância simbólica do júbilo que os acolhe. Claro que os líbios sabem, como toda a gente sabe, que a presença de repórteres e câmaras é fundamental para o sucesso de qualquer luta; mas são também os espectadores da CNN, o público americano, os EUA que julgam poder ajudá-los, que os habitantes da Bengazi libertada aclamaram ontem nos homens da CNN. A rua de Bengazi, como as vozes que nos chegam do Bahrein (cuja luta foi ofuscada pela da Líbia), demonstra algo que ninguém esperava ver: é à UE (os antigos colonialistas) e aos EUA (o aliado de Israel, o "império do mal", o invasor do Iraque) que os rebeldes apelam. Não é à China, nem à Rússia, nem à Venezuela, nem ao Brasil; nem tanto, sequer, aos países da zona. É aos que historicamente culpam por todos os seus males e que forjaram cumplicidades com todos os ditadores em causa - mesmo os que, como Kadhafi, mandaram abater aviões civis europeus - em troca de petróleo, contenção da imigração e investimentos bilaterais, os que empocham sorridentes o dinheiro das oligarquias e fecham os olhos a todas as violações de direitos humanos que não apareçam em prime-time (só agora é que a Suíça percebeu que Mubarak e Kadhafi são facínoras, para decidir congelar-lhes as continhas?) que os líbios e os bahreinianos pedem apoio: a velha Europa e a velha América. O dito mundo livre. Pode ser só pragmatismo simétrico, claro - e se o merecemos. Mas pode, também, ser outra coisa. E, se for, é bom que saibamos estar à altura.