das bravas
Dois dos filmes nomeados para os óscares deste ano celebram aquilo que poderemos denominar de jovens de fibra ou, mais epicamente, de exemplos de bravura. Uma tem 14 anos e a outra 17. As duas arriscam a vida com uma determinação deslumbrante, altiva, obstinada. As duas submetem toda a gente, incluindo os mais brutais e aparentemente insensíveis facínoras, à peculiar combinação de arrojo, maturidade, dureza e inocência que exibem no olhar e na fala. São heroínas clássicas, em todo o esplendor da herança narrativa que associamos ao classicismo. Que uma delas se mova no território do western, que deve todo o seu sortilégio à ideia de coragem solitária e desmedida – e viril --, não é uma coincidência; que a outra redima o universo white trash da América dos trailer parks, das caçadeiras de canos serrados, das tribos e dos expedientes escusos também não. São lugares associados à dominância masculina, em que estas duas raparigas irrompem como anjos vingadores, assombrosas na sua quase irrealidade.
É comum dizer-se – tão comum que mesmo o discurso de supostas feministas tantas vezes claudica nessa armadilha – que uma mulher corajosa é “como um homem”. Ainda na semana passada Clara Ferreira Alves escrevia, no Expresso, algo semelhante a propósito de Lara Logan, a jornalista da CBS atacada na praça Tharir – que esta é, ou foi, como repórter, “tão boa ou melhor que os homens”. Que para elogiar a fibra de uma mulher se recorra tanto a esta fraseologia é sintomático do arquétipo que se enfrenta: as mulheres são cobardes ou submissas, por norma, e os homens são arrojados e rebeldes. É um arquétipo idiota, certificado em eras de glorificação literária da bravura macha versus a doçura e a fragilidade feminina. Um estereótipo que ignora e despede o óbvio, que o jornalista e escritor britânico naturalizado americano Christopher Hitchens definiu num texto sobre as diferenças que segundo ele existem entre os sentidos de humor masculino e feminino: o heroísmo faz parte das, digamos, especificações biológicas das mulheres, pela inelutável e tantas vezes concretizada ameaça da (horrífica) morte no parto.
Não sou uma apologista das explicações biológicas para características que tendo a ver como individuais. E porque me parece que a coragem é sobretudo uma escolha ética – definida naquela célebre formulação de Sartre, a de que mesmo quando se tem uma arma apontada à cabeça se tem opção – não colho na mesma sementeira de Hitchens, embora lhe reconheça algum sentido. Até porque de alguma forma aquilo de que ele fala é, paradoxalmente, o motivo pelo qual as narrativas clássicas da bravura elidem as mulheres, ao relegá-las para o domínio da casa, do “dentro”, da gesta silenciosa (nem tanto, na verdade) da filharada e ao interditar-lhes os campos de batalha – mesmo quando, e tantos foram os casos além do de Joana de Arc, elas neles se “aventuravam”, era como homens, em travesti. O que nos faz regressar às heroínas adolescentes dos dois filmes da temporada, True Grit e Winter’s Bone (traduzidos cá como Indomável e Despojos de Inverno). Nos dois casos, a ausência do pai (“o homem de referência”) é o ponto de partida da narrativa: por via dessa ausência, elas têm de entrar não apenas no mundo dos adultos como especificamente no chamado mundo dos homens – e desafiá-lo/s. E a forma como estes reagem ao desafio, se parece demonstrar que a sorte protege os audazes é ainda assim devedora do arquétipo. A coragem das mulheres no meio dos homens e nomeadamente frente aos homens é sempre vista como algo de quase sobrenatural, porque do domínio da infracção, do interdito, da blasfémia – e geralmente compensada da forma mais brutal e trágica (Logan, entre muitas, pode atestá-lo). Não é por acaso que estas duas heroínas, sendo mulheres, não o são: podem apelar à reverência pela ideia de “pureza”, de virgindade, como uma mulher “feita” não poderia. E se podemos olhá-las como heroínas feministas, no sentido em que subvertem a ordem masculina instituída, podemos também vê-las como uma confirmação dessa ordem e do facto de tanto haver por fazer.
(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 6 de março)