A hipocrisia da direita portuguesa
As novas medidas de austeridade, apresentadas por Teixeira dos Santos, na sexta-feira de manhã, devem ser entendidas como parte de um longo e difícil processo negocial que envolve o governo português, o BCE, a Comissão Europeia e o Conselho Europeu. Portugal trava, desde Maio de 2010 - data em que a crise grega levou a zona euro a inverter a opção por políticas orçamentais expansionistas e, 'como se o mundo tivesse mudado', decretar a necessidade de regressar à austeridade e à ortodoxia do PEC -, uma guerra com as princípais instituições europeias sobre os instrumentos que têm de ser criados, à escala europeia, para que o processo de ajustamento não seja feito à custa da destruição das economias dos países periféricos.
É uma luta desigual. Para a direita europeia, a arquitectura institucional da zona euro não tem qualquer relação com a crise actual e todos os problemas se devem à indisciplina de uns quantos países, que, como manda a visão moralista da economia, devem assumir uma responsabilidade infinita pelos seus actos e encetar, rápido em e força, um processo de regeneração moral. Para quem perfilha esta narrativa sobre a crise da dívida soberana - isto é, de que o despesismo dos periféricos é a causa e não a consequência da crise actual - a solução é evidente: o ajustamento é da exclusiva responsabilidade dos países endividados, que têm agora de punir os seus cidadãos por terem ousado 'viver acima das possibilidades'. Os sucessivos PECs devem ser vistos neste contexto europeu, não como algo que decorre de um qualquer desejo perverso de Sócrates de punir e ir ao bolso dos portugueses.
Os resultados do Conselho Europeu de sexta-feira devem, pois, ser entendidos como uma vitória do governo português. Contra todas as expectativas, o Conselho acordou flexibilizar o fundo de estabilização, consagrando a possibilidade de o fundo comprar divída pública no mercado primário, isto é, de financiar directamente a compra de dívida quando o mercado exigir uma taxa demasiado elevada. É o ideal? Não. Mas, no contexto europeu actual, é o possível, e é certamente melhor que a situação anterior.
Esta política de austeridade que a Europa escolheu é economicamente errada e socialmente injusta, mas o governo português tem de definir as suas políticas partindo desse enquadramento. Pensar o contrário, pressupor uma soberania imaginária defendendo que 'se deve bater o pé aos mercados e aos agiotas' e 'dizer não à senhora Merkel e ao eixo franco-alemão', é uma retórica política estéril e irresponsável, que nada resolve.
O governo tem feito o que pode para defender o interesse nacional. Não esteve sempre bem, como é evidente. E esteve particularmente mal quando insistiu em nacionalizar a crise, o que acabou por expôr o governo a críticas injustas, sobretudo por parte da direita parlamentar portuguesa, que critica o governo sem nunca referir que este está a negociar com o Partido Popular Europeu, a família política a que pertencem CDS e PSD. A direita portuguesa está no melhor dos mundos: vê parte do seu programa imposto de fora para dentro, enquanto fustiga o governo em funções por implementar medidas impopulares que CDS e PSD, no contexto europeu actual, sabem ser incontornáveis. Pior: se o CDS e o PSD estivessem no poder, e tendo em conta o que se conhece das suas propostas mais recentes, a austeridade seria reforçada e ainda mais injusta.
Quando Passos e Eduardo Catroga dizem que nada se passou que justifique este novo PEC e sugerem que estamos perante a prova definitiva de que o governo foi incompetente e de que não confia no OE e na execução orçamental, estão a faltar à verdade da Política de Verdade que dizem representar. O que se passou foi que, na sexta feira, houve uma reunião extraordinária do Eurogrupo, onde se definia parte do futuro da economia portuguesa e no qual havia um conjunto de países que se mostravam irredutíveis quanto à possibilidade de flexibilizar o fundo de estabilização. As medidas anunciadas não se devem a problemas com a execução orçamental, que é a aquela que o PSD conhece: todos os dados conhecidos são positivos. Em relação ao défice de 2011, não há qualquer buraco nas contas portuguesas, como se tem tentado dizer. Há riscos associados à subida dos custos das matérias primas, ao aumento dos custos de financiamento e há estimativas diferentes resultantes de visões mais ou menos optimistas sobre a evolução da economia portuguesa. Neste caso, as contas do governo apontavam para um défice de 4.6% do PIB em 2011; as do BCE e da Comissão um pouco superior. Em face disto, e para garantir que a zona euro acedia a parte das suas pretensões sobre a flexibilização do fundo de estabilidade, o governo português decidiu tomar medidas adicionais que equivalem a 0.8% do PIB. Já em relação às medidas para 2012 e 2013, não se percebe a surpresa: se o défice de 2011 for de 4.6%, como está e esteve sempre previsto, para chegar a 3% em 2012 e 2% em 2013 seriam sempre necessárias novas medidas de austeridade. Se o PSD não concorda com estas, cabe-lhe sugerir alternativas. Não pode é reagir como se não soubesse que 2012 e 2013 implicavam mais austeridade, pois não consta que o défice se reduza sozinho. Mais: no Parlamento, sobretudo na Comissão de Economia e na de Orçamento e Finanças, onde estas matérias têm sido discutidas, o PSD tem sistematicamente alinhado e defendido a narrativa da direita europeia sobre a crise.
Para além de confrontar o PSD com o facto da sua posição ameaçar destruir o acordo de flexibilização do fundo de estabilização e empurrar Portugal para um modelo de intervenção à Grega ou à Irlandesa, está na hora de trazer a agenda do PPE para o debate político em Portugal e exigir que os seus representantes, CDS e PSD, assumam, de uma vez por todas, que são eles - e não o governo português - os principais responsáveis pela imposição de uma agenda de austeridade a Portugal. Enquanto tal não acontecer, pelo menos à direita, o debate político português continuará a assentar necessariamente numa farsa e numa hipocrisia.