cavalo à chuva
Pode parecer incrível, mas só esta semana é que me dei, contas feitas, conta de que quando se diz “esta geração corre o risco de viver pior que a dos pais” é de mim que se fala. Duplamente: porque aos 47 anos tenho idade para ter filhos recém-licenciados e porque, pelo que vi na manifestação de dia 12, há pessoas de 40 anos que dizem viver ainda com os pais por “não arranjarem emprego”. Sou, portanto, da geração dos pais e da dos filhos. Convenha-se, é obra.
Mas vamos ao que interessa. De um modo geral, a percepção que tenho é de que os miúdos que hoje andam na faculdade ou que acabaram de dela sair vivem francamente melhor do que eu vivia na mesma situação. Têm um muito mais elevado bem estar material – que de resto é confirmado pelos indicadores estatísticos, mas que se afere, por exemplo, visitando uma qualquer faculdade e contando os carros estacionados por todo o lado. Parecerá incrível mas quando andei na faculdade ninguém ia de carro para as aulas – a não ser os professores. Ninguém mesmo. Também não tínhamos computadores nem telemóveis – na altura, claro, não havia os segundos e os primeiros eram tal luxo que na minha faculdade, onde tínhamos aulas em antigas cavalariças, só havia um. Saíamos à noite, sim, mas a contar os tostões para a cerveja e os táxis, e no Bairro Alto havia dois ou três bares apenas, não mais, e raramente à cunha. Como a maioria dos meus amigos, comecei a trabalhar antes de acabar a faculdade: numa loja, primeiro, e depois tentando escrever para aqui e para ali. E como a maioria dos meus amigos saí de casa dos meus pais mal pude – e como eles para casas partilhadas, com tectos a cair, mobília de refugo e baratas. Queríamos ser “independentes”, viver a nossa vida, por mais desconforto que implicasse.
Não havia incentivos ao arrendamento jovem, muito menos crédito à habitação facilitado, nem estágios arranjados pelas faculdades: era “arranja-te”. E, surpresa, já nessa altura se usavam os recibos verdes – metade dos “empregos” que tive até hoje foram a recibo verde. Hoje, 22 anos depois, alguns dos meus colegas de faculdade e de primeiro emprego estão desempregados, a fazer aquilo a que se chama criar o próprio emprego; tenho amigos com salários em atraso. E muitos a recibo verde. Lamento pois não perceber de que se fala quando se diz que a geração “actual” corre o risco de viver pior que a minha; a minha corre o risco de viver pior – ou mesmo muito pior -- do que já viveu, e mesmo assim vive consideravelmente melhor que a dos pais e avós. Por exemplo, corremos o risco de ser a primeira geração a não contar com uma reforma, mesmo se descontou para ela – sendo que a dos nossos pais foi a primeira a poder, em Portugal, contar universalmente com isso.
Não sei de resto de onde veio a ideia – o direito? -- de que íamos sempre viver melhor, que cada geração iria sempre acumular mais riqueza e bens materiais que a anterior. É uma ideia risonha mas muito pouco realista. É aliás dificilmente uma ideia de esquerda – porque, afinal, pressupõe que íamos todos ficar cada vez mais ricos, consumir cada vez mais e trabalhar menos para isso, ou seja, que algures alguém iria produzir o que nós consumimos a preços cada vez mais baixos. Vivíamos bem com isso, até que isso nos bateu à porta: está a bater. Claro que muitos factores influem para o momento difícil que passamos, em Portugal e na generalidade do dito mundo ocidental. Estamos fartos de os conhecer -- a crise que nasceu da bolha imobiliária criada pelos “mercados” que ao crashar comeram uma parte considerável dos orçamentos dos Estados; os défices daí decorrentes que deixaram esses Estados presa dos mercados que “safaram” e que os forçam agora a seguir as sua regras, por via de políticas determinadas na destruição do Estado social e no nivelamento, por baixo (tipo a zero) daquilo a que chamávamos “direitos adquiridos”.
Isto é mau? É, é péssimo. E faz sentido rebelarmo-nos. Com a certeza, porém, de que culpar “os políticos” ou as gerações anteriores não nos servirá de nada. É preciso ter uma ideia do que fazer, das exigências/alternativas a apresentar. Chamar nomes, fazer cartazes giros e encher a avenida é catártico mas não nos salva da história.
(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 20 de março)