Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

jugular

TVI e a excisão genital feminina

A TVI passou há umas horas, no Jornal da Noite, uma reportagem sobre a excisão genital feminina. Chocante, como todas as peças que abordam este assunto; mas sempre de saudar, ainda que com mazelas, erros e ingenuidades flagrantes. A abordagem jornalística a este tema anda sempre no fio da navalha, e é compreensível que, em certa medida, assim seja, perante a enormidade, tão susceptível de causar repulsa e choque, que é verificar como esta abominação é praticada de forma ainda tão disseminada e banal em tantas partes do mundo. Informar sem cair numa certa abordagem dramática é difícil. O rigor e a isenção não são fáceis de manter perante uma prática que nos causa horror. Por outro lado, a excisão genital feminina é uma prática que nos é estranha, portanto, é muito fácil cair no simplismo de considerar que se trata de actos de culturas bárbaras, de gentes desumanas, de religiões cruéis. A excisão está associada à comunidade guineense, muçulmana, em Portugal, e este assunto é tanto um argumento para a xenofobia mais primária como um silêncio para xenofilia mais míope. A reportagem vagueou sinuosamente entre tudo isto, esquivando-se mas metendo o pé em terreno minado. 

A primeira constatação, logo dos primeiros minutos, foi a de uma desastrada ingenuidade no que poderia ser uma interessante incursão: a jornalista andou pelo Rossio a perguntar se alguém conhecia alguém que a praticasse. Faltou-lhe maturidade, experiência e tacto. Falar de "mutilação genital" em vez de usar a gíria ("fanado" ou outra forma) é meio caminho para gerar desconfianças e recusas. Mas pareceu admirada por ter chegado à Damaia ou ao Cacém e de ter esbarrado com um muro de silêncio. Uma pena, porque poderia ter ido mais longe. Recolheu testemunhos de médicos e sociólogos e pouco mais. Um mar de interrogações ficou por responder: quantos casos se conhecem em Portugal? reais? estimados? há denúncias? há processos? há condenações? o que tem sido feito junto das comunidades que (pelos vistos) a praticam? qual a reação da novas gerações? Nada, apenas informação vaga acerca da "Guiné-Bissau" e de que "é crime". Ficou o corajoso testemunho de uma jovem em frente às câmaras, decerto. Mas mesmo aqui, a tentação foi mais forte: a jornalista fez-lhe uma série de perguntas idiotas ("que diria à mulher que lhe fez isso, se a visse?" "tem uma filha? vai submetê-la ao mesmo?") e privilegiou a faceta dramática de forma perfeitamente desnecessária.

Esta faceta dramática, voyeurista, esta costela de morbidez-TVI que tão bem conhecemos acabou por ser dominante: viajou para o Quénia para procurar ali mais informação sobre o assunto, sem contexto nem aparato, como se fosse necessário ir ali, a um país bárbaro e distante, procurar o que, afinal, existe nos arredores de Lisboa. O clímax teve tanto de absurdo como de patético: filmar uma grotesca simulação do acto, não sei exactamente com que intenção: mostrar a crueldade, a dor e o horror? Se era isso, mostrar imagens reais de vaginas mutiladas era bem mais chocante. Mas menos dramático, decerto, e na TV tudo é drama.

Por fim, era inevitável a abordagem a uma corda sensível: o Islão, o facto de a excisão ser praticada maioritariamente por comunidades muçulmanas e de estar vulgarmente associado à religião islâmica. Isto podia ter sido arrumado, como ponto prévio, com meia dúzia de verdades incontestadas: a excisão é anterior ao Islão, não consta do Alcorão ou de qualquer ensinamento e é praticada também por comunidades não-muçulmanas. Mas em vez de o afirmar com todas as letras, desfazendo com clareza o mito e passar adiante, a jornalista decidiu ir falar com o xeque Munir, da comunidade islâmica (sunita) de Lisboa, que foi claro na sua reprovação. Mas a jornalista, anteriormente tão entusiasmada na sua adjectivação ("crime" e "criminosa" foram os termos a que se referiu à prática e a quem a exerce), revelou uma reverência tão ridícula como estéril. Começou por mostrar ostensivamente um temor respeitoso pela mesquita e pelo entrevistado, como se o Islão fosse uma religião de antropófagos de uma qualquer tribo dos filmes do Tarzan. Cobriu a cabeça com um lenço (devidamente mostrado pela câmara) e manifestou de viva voz o seu respeito, como se Munir fosse um semi-deus ofendido, no Portugal de 2011, por falar com uma mulher de cabeça descoberta e como se fosse obrigatório entrar numa mesquita deste modo. E, mais grave, limitou-se a perguntas de circunstância (as tais que um trabalho de casa prévio teria resolvido logo ao princípio), ficando-se pela rama. E se, em vez de deixar o entrevistado discorrer livremente ou ficar-se pelo "se o Islão aprova tal prática", que tal inquirir diretamente se tem conhecimento de casos concretos? Se não, como explica o facto de ela, em pleno Rossio, ter chegado rapidamente a quem pratica a excisão, e ele não? Se sim, o que fez e faz para evitar e acabar com eles? Denunciou-os à polícia? Impediu-os? É assunto tratado na comunidade? Promove o esclarecimento, a informação e uma condenação, sem hesitação nem reticência, no seu interior? Nada, nada.

É que este assunto é demasiado grave para nos ficarmos por divagações ideológicas ou culturais ou para nos limitarmos a produzir peças de "denúncia". Esperava dados concretos, um diagnóstico, o que existe, o que está a ser feito, o que vai ser feito, quem o faz, quem o ignora e quem o impede, mais do que a simples denúncia do acto em si. Mas, se calhar, é esperar demais.

Adenda: está aqui (thanx Shyz).

24 comentários

Comentar post

Pág. 1/2

Arquivo

Isabel Moreira

Ana Vidigal
Irene Pimentel
Miguel Vale de Almeida

Rogério da Costa Pereira

Rui Herbon


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Comentários recentes

  • Anónimo

    The times they are a-changin’. Como sempre …

  • Anónimo

    De facto vivemos tempos curiosos, onde supostament...

  • Anónimo

    De acordo, muito bem escrito.

  • Manuel Dias

    Temos de perguntar porque as autocracias estão ...

  • Anónimo

    aaaaaaaaaaaaAcho que para o bem ou para o mal o po...

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2014
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2013
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2012
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2011
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2010
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2009
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2008
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D
  235. 2007
  236. J
  237. F
  238. M
  239. A
  240. M
  241. J
  242. J
  243. A
  244. S
  245. O
  246. N
  247. D

Links

blogs

media