Brincar com as palavras
Como Miguel Relvas disse, os portugueses fogem do PSD quando este partido diz a verdade. Deve ser por isso que Passos Coelho gosta de brincar com as palavras. Vejamos dois casos paradigmáticos.
1) Na semana passada foi o plafonamento da segurança social, que o líder do PSD resolveu apresentar como uma medida que visa acabar com as pensões milionárias. Ora, não só já existe uma limitação das pensões (12 IAS), como o plafonamento não é uma medida que visa limitar as pensões. Em bom rigor, o plafonamento pretende retirar do sistema salários acima de x, isto é, limita o valor das pensões, no futuro, e o das contribuições, no futuro e no presente. Independentemente dos juízos sobre a justiça desta proposta, ela tem custos de transição elevadíssimos, pondo em risco a solvabilidade do sistema. Mas o problema não é só que no longo prazo estamos todos mortos, é também o efeito redistributivo desta medida - no curto, no médio e no longo prazo. Dizer que salários a partir de x deixam de contribuir para o sistema de segurança social, implica um enfraquecimento da sua dimensão redistributiva, enfraquecendo a dimensão de solidariedade colectiva, intra e inter geracional, do actual sistema de segurança social. Eu sei que o PSD (e outros) tende a esquecer isto, mas as instituições do Estado Social não são apenas seguros e formas sofisticadas e eficientes de mutualizar riscos. São, acima de tudo, instituições que operacionalizam e dão densidade ao conceito de cidadania, algo que nenhuma análise de cash flows ou cálculo actuarial poderá alguma vez entender. O PS fez uma importantíssima reforma da segurança social. Foi uma reforma elogiada por todas as instiuições financeiras. E Portugal é um dos países onde a questão da solvabilidade da segurança social menos se coloca. Perante tudo isto, o que justifica o plafonamento? Tirando uma preferência ideológica pelo sector privado, nada.
2) Passos volta à história do Estado regulador vs. Estado prestador, desta vez para falar do SNS. E, uma vez mais, decide brincar com as palavras, dizendo que o Estado não tem de ser o único prestador de serviços de saúde. Em si mesma, esta frase não significa nada, pois limita-se a constatar uma evidência: o Estado não é nem nunca foi o único prestador de serviços de saúde. Mas concordar com a existência de prestadores de serviços de saúde privados não implica que se defenda o fim da saúde universal e tendencialmente gratuita como ela existe hoje no SNS. Defender esta revolução - sim, revolução - implica dizer-se mais ou menos o seguinte: o PSD não concorda que o SNS deva ser financiado por impostos progressivos (de cada um de acordo com as suas possibilidades) e que a prestação de serviços seja universal e tendencialmente gratuita (para cada um de acordo com as suas necessidades). Se isto ficasse claro, então aí podemos ter uma discussão a sério sobre os méritos do sistema actual e os da alternativa do PSD. Mas isto implicava que Passos e companhia não fizessem demagogia e parassem de dizer coisas como 'não é justo que um pobre e um rico paguem o mesmo quando se desloquem a um hospital', pois isto ignora que a justiça já existe no financiamento via impostos progressivos. Segundo o que constava na proposta de revisão constitucional do PSD, o estado demitir-se-ia das suas responsabilidades no SNS, tornando-se apenas financiador de último recurso dos serviços de saúde para quem não pode pagar. Se é isto que o PSD propõe, então que o assuma de uma vez por todas e que se deixe de rodriguinhos verbais.