Brevíssima história do tempo
Nós somos feitos de tempo; e o tempo é feito das histórias que o narram. Desde Aristóteles, a política pode ser vista como uma história a que recorremos para nos entendemos a nós próprios. Aristóteles falava de uma natureza orgânica, teleológica, que ordenava a acção humana de forma hierárquica, distribuindo papeis bem definidos que nós nos limitavamos a representar. Mas ele nao se considerava o criador dessa história—ele limitava-se a descrever a ordem natural das coisas. Com a dissolução da polis grega e a crise da vida pública que lhe dava sentido, o homem descobriu a interioridade e a liberdade dos estoicos. E foi assim que a história mudou. Sem esta noção de liberdade e a riqueza interior que lhe está associada não teria havido cristianismo nem a noção de individualismo moderno que nós tomamos como auto-evidente. E foi assim que se tornou possível passar de uma história circular, essencialmente pagã, para uma narrativa linear, onde o homem se torna responsável pelo seu próprio destino. Por outras palavras: a história do homem perdeu a sua fundamentação numa natureza pré-determinada e espiritualizou-se. O primeiro pensador que tentou conceptualizar esta separação da natureza e a defender uma noção de liberdade entendida como autonomia, que se opõe a qualquer forma de dogmatismo, foi Kant. As suas três críticas (Razão Pura, Razão Prática e Faculdade do Juízo) são uma espécie de conclusão inconsciente desta narrativa de libertação. Coube finalmente a Hegel tentar completar Kant, e, numa espécie de Freudianismo avant la lettre, escavar e trazer à superfície esta história, confrontando a humanidade com a sua memória reprimida. Hegel pensava que nos podiamos reconciliar com a nossa própria história entendendo-a como algo que legitima uma certa ideia de necessidade, compatibilizando-a com a liberdade moderna: ela era no fundo uma narrativa de inspiração escatológica que legitimava um certo ideal de modernidade, valorizando a liberdade individual e o estado de direito. Para Hegel, a modernidade política é caracterizada por três esferas—a família, a sociedade civil e o Estado— que só são aparentemente autónomos. Contra uma certa narrativa liberal unilateral, que opõe estas três realidades, Hegel retrata-as como sendo inter-dependentes, como possuindo uma história comum. Ou seja, elas são a sua própria história; e, por isso mesmo, sempre diferentes e sem uma essência fixa e determinada. O fim da história de Fukuyama, Marx e de alguns hiper-liberais é na realidade o fim da imaginação humana, porque eles se esquecem do tempo, tentando cristalizar algo que a história e a experiência se apressam a dissolver. A única certeza histórica é que ela é sempre algo futuro, por escrever. O tempo em que vivemos também é feito de mudança. Chegou a hora de abandonarmos qualquer tipo de ilusão que nos tenta vender a ideia de autonomia e auto-suficiência do mercado. Precisamos de repetir algo parecido com os ensinamentos de Hegel, mas agora à luz das exigência políticas do presente. Hegel falhou não porque não tivesse razão mas porque o tempo assim o exige. Como disse Becket: Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better. Reinventar histórias é o nosso destino e o nosso dever. E nenhuma é definitiva, porque o tempo não deixa.