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a gravata sem véu

É uma mania minha, de tantas: aversão não negociável às gravatas. Em tempos, fiz até uma longa reportagem para esta revista sobre o assunto. Com muitas entrevistas e uma resenha histórica, espécie de arqueologia desse pedaço de seda garrida que passa por certificado de respeitabilidade e masculinidade. Queria perceber quando e como um lenço de pescoço se tinha solidificado no imaginário e nos costumes como obrigação e passaporte universal para o território “dos homens crescidos” – e “sérios”. Entender como é possível que tanto rapaz rebelde e de bom gosto acabe enclausurado naquele nó ridículo, debatendo-se para todo o sempre com as particularidades da combinação entre riscas, bolinhas, cornucópias ou cores lisas com a camisa e “o fato”.

 

A maioria dos entrevistados confessaram a sua aversão resignada. Os pivôs de TV peroraram sobre a perda de “credibilidade” que representaria aparecer num telejornal sem a echarpezita inteiriçada ao pescoço; os deputados contaram os avisos apavorados dos colegas mais antigos quando quiseram entrar na casa da democracia de tshirt ou gola alta; os empregados de éne firmas denunciaram os códigos vestimentares das ditas, escritos ou implícitos, e a forma como se sentiam impelidos a jamais aparecer no local de trabalho sem aquela coisa, sob pena de “não progredirem” ou serem mesmo “chamados à pedra”; os que procuravam colocação ou de algum modo se submetiam ao julgamento de outrem (em tribunal, na academia, etc) assumiam ponderar sempre se a diferença entre um sim ou uma nega não estaria no uso ou não da tira de tecido. Encontrei muito pouca gente que assumisse gostar de gravatas; não vislumbrei um único que achasse fantástico “ter de” as usar. E, no entanto, todos se conformavam, como se de uma fatalidade se tratasse. E como se aquilo de que falavam não fosse a mais dispensável das peças de vestuário, nada mais, afinal, que um enfeite, uma excentricidade.

 

Reparem: nada existe no vestuário feminino ocidental que se equipare, em simbolismo e carácter compulsivo, à gravata. E nada, como a gravata, transporta a ideia de “reduto masculino”. Uma mulher vestida de calça, casaco e camisa não está “vestida de homem”; mas acrescente-lhe uma gravata e ei-la travestida. O que é tanto mais estranho quanto a ideia de adereço inútil e de enfeite está muito mais associada ao vestuário feminino e ao universo das mulheres que dos homens, geralmente descritos como seres de elevado sentido prático que não se interessam por futilidades nem sequer se preocupam com a imagem – a não ser, bem entendido, que tenham uma orientação sexual não maioritária.

 

Ora, como é que isto sucedeu? Não é claro. A gravata tal como a conhecemos  tem a sua génese nuns lenços de pescoço usados pelos militares croatas que no século XVII combateram pelos franceses; o seu nome é mesmo uma corruptela francesa da palavra “croata”. Foi daí que surgiu a moda daqueles enormes lenços rendados de pescoço que conhecemos dos quadros e dos filmes de época. Associada ao vestuário dos nobres, só no século XX seria integrada na indumentária normal e mesmo assim só dos empregados de “colarinho branco”. A gravata “moderna”, tal como a conhecemos, foi aliás criada nos anos vinte do século passado e insinuou-se progressivamente como vértice inalienável, com o fato e a camisa, numa configuração tripartida do vestuário masculino formal e “de rigor”.

 

Erigida, num primeiro momento, a certificação de formalidade e elegância, a gravata viria a transformar-se num dogma de “seriedade e masculinidade”, figurando assim, entre as peças de roupa, no mesmo patamar simbólico do véu que em certas paragens e culturas é considerado obrigatório ou mesmo imposto por lei às mulheres. E se o véu funciona como certificado de respeitabilidade e mesmo garante de segurança – uma mulher sem véu pode ser considerada uma devassa ou pária e em vários países será até presa, quando não espancada ou atacada sexualmente – a gravata assinala o mesmo tipo de obediência e de integração convencional (sem o incentivo da violência explícita, bem entendido – era também só o que faltava). Como a mulher que sem véu se sente “despida”, o homem que sem gravata teme que o considerem “desrespeitador” está a submeter-se a uma fatwa. E que tal pensar nisso?  

 

(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 8 de maio)

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