Parabéns à Amnistia.
A propósito do cinquentenário da Amnistia Internacional (AI), ontem, 28 de Maio, fui “buscar” um texto que escrevi, na morte de Peter Benenson (1921-2005). Trata-se de um quase desconhecido em Portugal, onde muitos portugueses lhe devem e poucos sabem que esta importante organização por ele fundada está ligada à nossa história recente.
Numa entrevista, por ocasião do vigésimo aniversário da AI, um dirigente dessa organização afirmou que «Portugal sob os regimes de Salazar e Caetano foi um dos países em que a AI teve o maior número de casos de campanhas para a libertação de prisioneiros de consciência». Por seu lado, o próprio Peter Benenson contou que a AI se devia a Portugal. Efectivamente, num dia de Novembro do distante ano de 1960, ao viajar de metropolitano em Londres, esse jovem advogado então com 33 anos, leu uma notícia sobre a prisão, num café de Lisboa, de dois estudantes que brindavam pela democracia. Indignado, pensou no que poderia fazer para mobilizar a opinião pública e decidiu que um dos meios era o envio de centenas de protestos escritos ao regime de Salazar. No entanto, achou também que, em vez de iniciar uma campanha, por causa um único país, se deveria chamar a atenção do público para o sofrimento dos presos «de consciência», por razões políticas e religiosas, no mundo inteiro. Assim, escreveu um apelo à Amnistia, publicado, no jornal Observer, de 28 de Maio de 1961, intitulado «Os prisioneiros esquecidos», nos quais incluía os «presos de consciência», seguindo a frase de Voltaire: «detesto os seus pontos de vistam mas estou preparado a morrer pelo seu direito a expressá-los».
Tentou-se inquirir quem poderiam ter sido os jovens detidos, no final de 1960, que motivaram a criação da então Amnistia Britânica e concluiu-se que, em Outubro desse ano, muitos tinham sido presos, em manifestações de rua, devido às comemorações do cinquentenário da implantação da República Portugueses, sendo, por isso, provável que nunca se venha a saber a sua identidade. Mas, o certo, é que, a partir desse ano, a situação dos presos políticos portugueses não mais deixou de ser noticiada no estrangeiro.
Em Dezembro de 1962, em Paris, onde se realizou a I Conferência Internacional da Europa Ocidental para a Amnistia dos Presos e Exilados Políticos Portugueses, foram divulgados uma «carta dos trabalhadores do Couço», em que se dava conta das torturas a que mulheres presas tinham sido sujeitas e dois relatórios, de Judith Ward, da AI, e do advogado belga, Wolters, que tinham visitado Portugal nesse ano. Em, 1963, o Comité Britânico para a Amnistia em Portugal apresentou uma petição a favor dos presos políticos em Portugal e difundiu, em Maio, uma circular com instruções acerca do apoio e da adopção de presos. As secções da AI enviaram, nomeadamente, inúmeras cartas de protesto, às autoridades portuguesas, acerca do julgamento de José Bernardino, sovado em tribunal, conforme presenciaram os observadores Ronald Waterhouse, um advogado inglès, e Patrick Hallinan, um procurador de S. Francisco. Em Fevereiro de 1964, ano em que a AI fez campanha a favor das presas políticas Piedade Gomes dos Santos e Ivone Dias Lourenço, o mesmo comité editou a brochura «Portugal e o preço da oposição» e, em Abril, noticiou reabertura do Tarrafal.
A actividade do comité britânico da AI ganhou tal amplitude, em 1964, que a PIDE vigiou a morada da sede daquela organização em Londres, informando sobre quem lá entrava. Em 6 de Junho, o comité britânico da AI pediu informações sobre a situação da presa política Alda Nogueira e um elemento dessa organização “adoptou” os prisioneiros Joaquim Carreira e Fernanda Paiva Tomás, enviando-lhes dinheiros e livros. Diga-se a que a PIDE recusou a entrada, na prisão de Caxias, do livro The Time Machine, de H.G. Wells, por se afigurar que continua matéria que não convinha «ser do conhecimento do destinatário» e devolveu o dinheiro, com o argumento de que os presos recebiam alojamento, alimentação e assistência médica «gratuitas». Por seu turno, o jornal Western Mail, de Cardiff, noticiou, em 25 de Setembro de 1964, o vivo debate, ocorrido entre o cônsul de Portugal nessa cidade e Helen Ward, secretária do comité inglês da AI, recém-chegada de Portugal, que publicara o artigo «Portugal, uma mulher no cárcere», acerca de Fernanda Paiva Tomás e de outras presas políticas portuguesas. Ainda nesse ano, a AI informou que tinham sido presos vários médicos em Portugal, entre os quais, Maria Julieta Guimarães Gandra, que foi, aliás, eleita «prisioneira do ano». Em 10 de Dezembro, realizou-se um serviço especial na catedral de S. Paul em Londres, a favor dessa «prisioneira do ano», a qual, graças à pressão da AI, acabou por ser libertada, muito doente, em Junho de 1965, ao fim de seis anos de prisão, quando tinha sido condenada a uma pena de dois anos.
Neste último ano, a AI britânica decidiu “adoptar” o preso político Augusto Lindolfo, enquanto a secção de Camberra intercedeu por João Honrado e trinta grupos dessa organização, na Dinamarca, manifestaram preocupação com o tratamento infligido a dois estudantes portugueses presos. Em 16 de Julho de 1966, os jornais britânicos Guardian, Daily Worker e Daily Telegraph referiram as declarações do representante da AI, Lord Gifford, proferidas numa conferência de imprensa, acerca do julgamento de Pedro Vieira de Almeida e de Rogério de Carvalho, para o qual, aliás, a secção da AI de Vegen, na Dinamarca, recolheu fundos com o fim de lhe pagar um advogado. O Daily Telegraph noticiou ainda que Gifford considerou que a sua presença em Lisboa tinha tido uma influência moderadora, embora o juiz presidente, Almeida Moura, o tivesse negado, dizendo-lhe para se preocupar antes com o seu próprio país e com outros onde existiam, ao contrário de Portugal, a pena de morte e a prisão perpétua. O facto de a AI afirmar, em 1966, que José Vitoriano tinha sido recentemente libertado, por pressão internacional, levou a PIDE a rebater essa afirmação, junto do director geral do MNE, alegando que tinha sido libertado, por não se justificar a sua continuação na prisão.
Em 20 de Setembro de 1967, o jornal The Times publicou um artigo, da autoria de Patricia Steadman, secretária do Comité Britânico para a Amnistia Portuguesa, sobre «os prisioneiros portugueses», a denunciar o «inferno» de Peniche e as medidas de segurança, que transformava as sentenças em «prisão perpétua». Entre os casos por ela relatados, contava-se o do engenheiro Álvaro Veiga de Oliveira, que tinha sido sujeito a espancamentos e às torturas da «estátua» e do «sono» durante mais de duas semanas. Seria fastidioso continuar a enumerar a acção da AI a favor dos presos políticos portugueses, mas refira-se que, em final de 1970, Anna Inger Fahlander, da AI, foi expulsa de Portugal, acusada de ingerência nos assuntos internos do país, por ter visitado sete presos recém-libertados.
Por seu turno, o secretário-geral da AI, Martin Ennals, nunca deixou de enviar os relatórios anuais dessa organização, ao adido de imprensa da Embaixada de Portugal em Londres, encontrando-se várias vezes com ele, nomeadamente, 1971 e 1972, para mostrar a sua preocupação com o caso da capela do Rato, a situação de dois presos africanos e a manutenção, na prisão, de Domingos Arouca, após terem sido abolidas as medidas de segurança. Em 1971, ano em que observadores da AI estiveram em dois julgamentos políticos, entre os quais no de Daniel Cabrita, foi, aliás, divulgado um relatório da Amnistia Internacional, intitulado «Tortura no Mundo», onde era feita ampla referência à tortura em Portugal. Depois de concluir, no seu relatório anual de 1971/72, que a repressão em Portugal não tinha diminuído, com a chegada de Marcello Caetano ao governo, a AI informou que tinham sido presos, entre Maio de 1970 e Novembro de 1971, cerca de duzentos sindicalistas, católicos e estudantes.
É um facto que, com Marcello Caetano, as violências não diminuíram e até recrudesceram, mas que também aumentaram os protestos contra elas, quer em Portugal, quer no estrangeiro. Sem que isso alterasse a situação, diga-se que o presidente do Conselho chegou a enviar à DGS, depois da divulgação internacional dos massacres de Wyriamu, um despacho acerca da «campanha a tocar a tecla das “torturas” a presos, designadamente por crimes contra a segurança do Estado». Nele, afirmava-se que, para se poder demonstrar, «de consciência tranquila», que se tratava de calúnias, não se devia agredir os presos a fim de o “fazer falar”. Evidentemente que a DGS sempre afirmou que as acusações de maus-tratos aos presos eram calúnias dos inimigos do regime e da sua política ultramarina e, numa nota de imprensa, publicada no jornal O Século, em 22 de Outubro de 1969, deu-se ao “trabalho” de esclarecer que não eram correctas as afirmações habituais sobre «presos políticos», como lhes chamava a oposição, dado que essa polícia apenas detinha indivíduos, acusados de «crimes contra a segurança exterior e interior do Estado».
O certo é que, devido a pressões internacionais, alguns presos “perpétuos” acabaram por ser libertados, mesmo se a PIDE/DGS sempre tivesse afirmado que eles eram soltos porque ela assim o determinava. Lembre-se, ainda que, durante a vigência da ditadura em Portugal, a AI não se preocupou apenas com os prisioneiros de «consciência», por razões políticas, mas também com aqueles que sofriam a repressão por motivos religiosos. Relatou nomeadamente a repressão movida pela DGS às Testemunhas de Jeová (TJ), em Angola e Moçambique, colónia onde denunciou, em 1973, a existência de oitocentos presos, entre os quais se contavam vários elementos da Igreja Presbiterial. No final desse ano, a AI e outros trezentos delegados, entre os quais se contou o psiquiatra Afonso de Albuquerque, como representante da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, participaram num Congresso Mundial pela Abolição da Tortura, em Paris, e, até ao 25 de Abril de 1974, continuaram a chover, junto das autoridades portuguesas, as cartas das secções da AI em vários países, a protestar contra a repressão política e a tortura em Portugal. Penso que, além de divulgar a forma como Peter Benenson interveio na história recente de Portugal, se deve mostrar de alguma forma o reconhecimento de muitos portugueses por uma acção, que os retirou do isolamento e interferiu positivamente nas suas vidas, ao colocar um pau na engrenagem da ditadura portuguesa.