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jugular

andam a pedi-las

Desde criança que, como qualquer mulher portuguesa, oiço comentários não solicitados por parte de absolutos estranhos sobre o meu aspecto e o meu potencial sexual. Desde criança que me dizem que não devo responder nem tão pouco deles tomar conhecimento – isso seria como que a prova da minha “honradez” – “mulher honesta não tem ouvidos”. O que me exigem, portanto, é que me resigne a ser ruidosamente avaliada na via pública sem jamais reciprocar ou dar sequer nota do meu incómodo – sob pena, aliás, de me deparar com um crescendo de violência, crescendo esse reportado por organizações internacionais que combatem este tipo de assédio e agressão, como a britânica ASH (Anti-Street Harrassment), as quais recolhem testemunhos e verificam ser muito comum que quando uma mulher “responde” seja alvo de insultos, ameaças e mesmo violência física. E que certificam ser o assédio sexual de rua uma realidade para a esmagadora maioria das mulheres, assédio esse que inclui os clássicos assobios e outros ruídos, desde o som de beijo aos que são usados para obter reacções de vacas e cavalos a comentários sobre o corpo ou o que fariam com ele.

 

O que se diz, pois, às mulheres, é que a rua é o domínio dos homens e que elas, ao aventurarem-se nele sós, têm de se sujeitar ao que isso implica, considerando-se cheias de sorte se as insinuações e agressões não passarem da conversa. Este dispositivo de consolidação da dominância masculina do espaço público e correspondentes submissão e banimento femininos tem, é claro, manifestações muito mais virulentas em certas partes do mundo: a imposição da burqa e do niqab e de uma companhia masculina na rua e o castigo, que pode chegar à morte e inclui espancamento, prisão e violação, para quem não as observe. Mas o facto de a graduação ser tão diferente não deve impedir-nos de ver que é do mesmo mecanismo que se trata: o de remeter as mulheres para casa ou para a protecção masculina e de lhes fazer sentir que fora de uma e da outra estão por natureza disponíveis e rigorosamente vigiadas: “habilitam-se”.

 

O celebre acórdão da coutada do macho latino, exarado pelo Supremo Tribunal português no início dos anos 90 a propósito de duas turistas violadas no Alentejo, corporiza juridicamente a noção, como a observação de um responsável policial canadiano que recentemente alegou que uma mulher havia sido violada “por causa da forma como estava vestida” demonstra que em pleno século XXI e em países que consagram a plena igualdade entre mulheres e homens essa igualdade não fez o seu caminho completo nem sequer nas cabeças de quem tem por função certificar a sua observância. O movimento “Slut Walk”, criado no Canadá como resultado, e que teve em Lisboa o seu primeiro evento a 25 de Junho, nasceu daí: mulheres que saem à rua com roupas consideradas “provocantes” num desafio ao estereótipo do “estavas a pedi-las”.

 

Como a Slut Walk, a ideia de criminalização do piropo, proposta há pouco tempo pela UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), suscita reacções desagradadas que, para além da sempiterna ridicularização do feminismo protagonizada pelos e pelas do costume, juntou também, no caso da proposta do novo crime, feministas “não clássicas”. Estas alegam que não faz sentido, por um lado, considerar que certas “bocas” são ofensivas (por serem, presumo, simpáticas, elogiosas, de molde a favorecer a auto-estima e parte de um “jogo sexual”); por outro, que criminalizar esses ditos ou ruídos é tratar as mulheres como tolinhas que não se sabem defender. Tratar-se-ia, portanto de “um exagero”. É possível – mas tendo em vista a situação de absoluto exagero que é a de nenhuma mulher poder presumir que pode sair à rua sem que lhe comentem o decote, a altura da saia e o estado geral da sua figura, parece-me que não faz mal exagerar no bom sentido, o da pedagogia e do respeito. A questão é, afinal, a da sinalização da inaceitabilidade deste, digamos, “costume”.

 

"Situações desagradáveis, mas de duvidosa gravidade": foi com estas palavras que a Associação Sindical dos Juízes entendeu classificar apalpões e “encostos” quando colocada perante a inclusão, no novo Código Penal de 2007, de um novo crime, o de “importunação sexual” (“quem importunar outra pessoa praticando perante ela actos de natureza exibicionista ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual”), com prisão até um ano. Seria pois "porventura excessivo" criminalizar coisas tão comezinhas (quiçá mesmo engraçadas?), concluíram. Mas o apalpão ficou crime. E digamos que quem acha que é dono da rua e que todas as mulheres lhe pertencem anda mesmo a pedir outro susto.

 

(publicado ontem, 3 de julho, na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine. republico aqui o texto mais cedo do que é costume porque na revista saiu com o título 'corações mentirosos', da crónica de há 3 semanas, coisa que naturalmente já causou alguns engulhos)

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