glória difícil
foi em maio de 2005. acho que foi em maio. a ana sá lopes, o joão pedro henriques e o nuno simas tinham um blogue, o glória fácil, e perguntaram-me se queria entrar. eu achava os blogues uma estupidez sem nunca ter lido blogues -- sim, eu também -- mas eles insistiram que era giro e lá experimentei. ao princípio, escrevia no blogue, que não tinha comentários (éramos contra, explicaram-me, e eu achei que a explicação fazia sentido) como num jornal: não sabia que era isso dos linques nem que nos outros blogues pessoas respondiam ao que eu escrevia. os outros glórias lá me foram dizendo 'fulano meteu-se contigo', 'sicrana chamou-te parva', 'beltrana adora-te'.
foi como entrar num espaço cheio de gente invisível e ir percebendo que ela está lá e começar até a saber distinguir vultos. conhecer pessoas só pelo que escrevem -- ao ponto de conseguir criar delas uma imagem física que pelo menos num caso me permitiu identificar a pessoa numa audiência de um debate, de tal modo era coincidente com o que antecipara. perceber que a blogosfera era uma imensa conversa, em que o maior gozo era a provocação e o trocar de galhardetes.
durante algum tempo -- anos -- discutiamos com assertividade e até agressividade mas com uma cumplicidade quase doce. podíamos irritar-nos, tourear-nos, cravar bandarilhas mas não me lembro de, à excepção de alguns casos patológicos, nos insultarmos e de, muito menos, caluniarmos ou usarmos insinuações relacionadas com a vida privada ou profissional das pessoas. havia essa coisa antiga, tão preciosa: respeito. e alegria -- não esquecer a alegria.
depois, a coisa foi mudando. encontrei na blogosfera grande parte do meu actual círculo de amigos, mas fiz também inimigos para a vida. alguns amigos, mais ou menos recentes, transformaram-se em inimigos -- isso foi o mais estranho e terrível. e o ódio foi crescendo, ocupando a bloga, tornando impossível aquilo que um ou dois anos antes era tão normal -- que pessoas com ideias diferentes pudessem encontrar-se, jantar, beber copos, contar piadas, encontrar coisas em comum (há sempre coisas em comum). foram ditas coisas que não podem ser desditas; feitas acusações imperdoáveis, insinuações irredimíveis. a calúnia tornou-se algo de corrente, comezinho. cavaram-se fossos intransponíveis. como se um vírus particularmente virulento se tivesse instilado algures nos backoffice dos blogues, nas profundezas do html.
seis anos depois de começar a escrever em blogues, noto que os leio cada vez menos. aquilo que era um prazer transformou-se numa irritação e cada vez há mais blogues e bloggers que só me merecem desprezo -- pessoas que quando comecei aqui achava interessantes, inteligentes, sensíveis e que um dia se revelaram simples canalhas. talvez, afinal, os críticos da bloga tenham uma certa razão -- há nesta instantaneidade, neste poder solitário, narcísico, da publicação imediata, sem filtro, nesta total liberdade um risco imenso, o de ir longe de mais, de transformar em exposição perene (ah, as caches, pois é) um desabafo idiota, uma acusação sem sentido, um impropério gratuito.
mas a verdade é que nestes seis anos muito mais coisas mudaram. não foi só a bloga que se transformou, em grande parte, num repositório de ressentimentos, calúnias, insinuações, ataques, perseguições pessoais sem freio e mera indecência. não podemos surpreender-nos quando num blogue se roubam fotos de um facebook privado, inacessível ao público, para as publicar numa piadola qualquer, pelo prazer doentio de violar e de honrar a stasi, quando jornais ditos de referência usam sem pestanejar fotografias tiradas com telemóvel a uma qualquer dita "figura pública" na sua vida privada. não podemos achar extraordinário que haja blogues repletos de textos difamantes quando os jornais ostentam nas suas caixas de comentários e até em artigos de opinião o mesmo tipo de verve.
deixámos isto suceder. todos nós. e não porque não chamámos a polícia ou não pusemos processos ou não mudámos leis para as tornar mais duras, não; porque não nos indignámos o suficiente, ou porque fomos muito poucos a indignar-nos e a indignação dos poucos foi ridicularizada, apodada de fascista ou de censora. confesso que é com um sorriso que vejo agora nos gabinetes aqueles que não se poupavam nos insultos mais verrinosos aos que apodavam de 'boys e girls' e para quem qualquer pessoa que concordasse com o governo anterior era venal, à espera de recompensa ou já a soldo. confesso que rio quando vejo o blogue das piadolas superficiais e ignaras e das bocas mais rascas exigir profundidade e fundamentação às críticas ao 'seu' governo. confesso que acho tudo isto muito divertido mas que não consigo deixar de pensar na big picture. e a big picture é que está tudo mal, e não fica bem por agora serem outros a ser caluniados e perseguidos -- ou, melhor dito, por agora haver outros a serem também caluniados e perseguidos.
tinhamos esta glória, mas não era fácil. e não fomos capazes de estar à altura. nós todos, o mundo.