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psicanálise do pequeno almoço

A ideia de hotel convoca uma série de imagens felizes. Camas a estrear, de lençóis bem esticados, frescos, com muitas almofadas, abertas por seres silenciosos e invisíveis que arrumam tudo o que deixamos espalhado, sabonetes pequeninos que toda a gente gosta de roubar, roupões de turco que nos parecem sempre melhores que os que temos em casa, e o pequeno-almoço. O pequeno-almoço de hotel é daquelas coisas pelas quais atribuímos o nosso set pessoal de estrelas. Não interessa se estamos de férias ou em trabalho, por um dia ou um mês: lembramos os hotéis pelos pequenos almoços, mais do que pelas camas, pelas casas de banho, pelo room service ou pela piscina.

 

Talvez seja só assim para quem gosta de comer – mas a maioria das pessoas gosta de comer, e mesmo entre as que comem sempre o mesmo ao pequeno almoço (é o meu caso, que ainda por cima viajo com os meus próprios cereais – sim, não estou a brincar -- e só não ando com os iogurtes atrás por absoluta impossibilidade) a visão de mesas cobertas de vitualhas, mil e um sumos de fruta, queijos e enchidos de todas as nações, pães de 10 tipos e, sobretudo, coisas que nunca viramos antes (leite de amêndoa em Marraquexe ou arenques em Jerusalém) resulta numa alegria pueril, que se compraz na disponibilidade. Por esse motivo, todos gostam de “descer para o pequeno almoço” em vez de o pedir para o quarto, mesmo se a ideia de comer na cama sorri à generalidade da população mundial (mesmo aos marcianos, de certezinha). E, por esse motivo, todos rosnamos aos incompreensíveis, encanitantes, acintosos e totalitários horários de pequeno almoço que vigoram na maioria dos hotéis.

 

Que sentido fará, na cabeça dos hoteleiros, obrigar os hóspedes a tomar o pequeno almoço das 7 às 10 (com mais uma hora, geralmente, aos fins de semana – tipo como se ao fim de semana lhes desse para nos mimar)? A ideia de que as pessoas que se alojam num sítio onde se paga uma diária que inclui pequeno almoço têm de sair da cama ao romper da aurora se querem comer o que pagaram desafia qualquer racionalidade – a não ser, claro, a de uma visão militarizada da existência. Os hotéis responderão a isto coisas sem nexo, como “é preciso libertar as mesas para o almoço” ou “o pequeno almoço não pode ser às horas que os clientes querem” ou, em casos mesmo borderline, “os funcionários não podem ficar ali indefinidamente à espera que as pessoas acordem” – como se não fosse mesmo para se acomodar, e sorridentes, às nossas idiossincrasias que os hotéis, e quem neles trabalha, existem, e como se fosse normal obrigar pessoas a sair do quarto sem tomar banho, desgrenhadas, de ramelas e óculos escuros, ao tropeção para ainda apanhar um papo seco.

 

É claro que nem toda a gente que se aloja em hotéis está de férias e passa as noites na borga; mas, por incrível que pareça, mesmo as pessoas que estão em trabalho podem não querer levantar-se cedo. Sendo que os hotéis não têm nada a ver com o que quem neles temporariamente reside faz à noite, e muito menos é admissível que estabeleçam ditames moralistas, tipo “se querias comer acordasses”. E se é mais ou menos expectável que num hotel na África dos safaris ou do deserto, onde os dias começam muito cedo, o pequeno almoço seja servido das cinco às nove, ou num resort de neve entre as seis e as nove e meia (ou dez, vá), já que ali se está para esquiar e ninguém, a não ser que esteja lesionado ou doente ou enganado no destino, fica a manhã na cama, não há quem entenda que nos estabelecimentos congéneres urbanos ou de praia se pratique o mesmo regime – a não ser como uma forma renitente de subjugação, alicerçada na perpetuação acéfala de hábitos e usos a que se costuma dar o nome de “tradição” ou “sempre foi assim”.

 

Pode ser que a estrutura essencial dos estabelecimentos hoteleiros, tão semelhante a -- e por vezes mesmo “aproveitada de” -- quartéis, prisões e conventos lhes tenha induzido o mesmo dispositivo de vigilância e punição e se trate, pois, de um problema psicanalítico (ou, vá, da ordem do exorcismo). Mas seja lá qual a raiz da tontaria, é altura de fazer um desenho. Não somos nem monges nem presidiários nem magalas: queremos dormir até às onze, acordar com preguiça, tomar um duche e descer nas calmas, penteados, de olhos abertos e com a roupa do direito, para encher o bucho, ou pelo menos os olhos. Pagámos para isso, ok?

 

(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 26 de junho e republicada agora a pedido de várias famílias)

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