a carreira a pedais
Nessa altura não havia propriamente "autocarros"; havia, sim, "camionetas" ou "carreiras". Pelo menos, era isso o que a gente apanhava (na sua variante vernácula cám'net). Eram de uma firma chamada Eduardo Jorge, amarelinhas. Havia também umas da Gaspar, às riscas verdes, salvo erro, mas mais raras. As da Eduardo Jorge é que eram. Lá dentro andavam, para a frente e para trás, uns senhores com umas cadernetas, posteriormente substituídas por umas maquinetas com uns pinos vermelhos e brancos, a tiracolo, que faziam traque traque traque e de onde saía depois um bilhete. Mas nesse tempo eram mesmo umas cadernetazinhas de bilhetes às cores. Ora, quando se é criança, o fascínio por este tipo de rituais e práticas, utilizado de forma irregular estranho à rotina doméstica, é inevitável. Não se comparava evidentemente ao espanto extradimensional que era andar de comboio, mas esse ficava mais longe e era utilizado com uma frequência bem mais rara. A carreira ficava no limiar da normalidade e do extraordinário. Havia, contudo, uma faceta obscura, misteriosa e intrigante, uma janela para a twilight zone que eu aguardava que se abrisse, no início de cada viagem, com um misto de receio e de curiosidade. Em todas elas foi inevitável uma pequena deceção e alívio.
Eu tinha uns 4, 5, 6 anos. O meu irmão, seis anos vais velho, dizia-me que uma das carreiras era a pedais, uma espécie de bicicleta gigante e coletiva. As pessoas sentavam-se e depois pedalavam para aquilo andar. Mas só havia uma e, por azar, não era aquela. Mas da próxima talvez tivéssemos sorte. A minha curiosidade era muita, bombardeava-o com perguntas sobre como era nas subidas, e se a carreira viesse vazia, e se era fácil ou difícil, e se as pessoas estivessem cansadas, como era? Ele respondia invariavelmente com um misto de gozo e seriedade, dizia que "ainda ontem" tinha ido numa dessas, o melhor era eu esperar para ver. De cada vez que aguardava, na paragem entre a escola e a igreja, como de costume, pensava se era chegado o momento. E quando via aparecer a mancha amarela na curva perguntava-lhe "é esta?"; "não sei, só depois de entrar".
A carreira a pedais nunca fez a sua aparição. Posteriormente, não sei se por ter crescido, se por a tranquilidade pacata ter sido substituída por uma euforia e um fervilhar de cravos, novidades, imagens e um vocabulário tão estranho como excitante, esqueci-me dela. A Eduardo Jorge passou a chamar-se Rodoviária Nacional, o amarelo desapareceu e foi substituído por outras cores. Agora é branco com riscas e ostenta Scotturb. Ficou esquecida numa gaveta da memória, como tantas outras coisas. Há dias, a agulha do harddisk foi lá parar direitinha, movida por alguma força inconsciente que me fez relembrar, num ápice, a velha historieta de infância. E o que a desencadeou? Ora, que outra coisa podia ser? As recentes informações acerca das drásticas reduções da incidência do passe social, que deixará de ser uma espécie de direito universal, uma conquista de Abril, algo que faz parte do limiar mínimo dos direitos e do bem-estar social, para passar a ser uma exceção para indigentes, vigiada, confirmada, controlada e carimbada por registos fiscais e declarações de rendimentos. Quem é rico não precisa de fazer nada, basta ostentar sinais de riqueza ou, no máximo, um cartão de crédito gold; quem é pobre tem que provar tudo e mais alguma coisa para obter umas quantas migalhas, que dantes eram comuns, banais e adquiridas e agora passaram à categoria de privilégio (melhor dizendo, de favor).
Ontem dirigi-me a um guichet e pedi informações acerca de algo que, bem suspeito, também tem os dias contados: o passe 4_18. A resposta não foi tranquilizadora: "pelo que sei, está a ser ponderado, talvez para o próximo ano". Muito bem. Sugiro, portanto, que se vasculhe nos arquivos da história rodoviária portuguesa e se encontre a tal carreira a pedais. Adaptada aos tempos modernos, à Europa do século XXI, ao país da Expo 98 e do Euro 2004, seria certamente a solução ideal para quem pensa que os transportes públicos têm que ser geridos como uma empresa imobiliária ou de capitais, dar lucro e apresentar resultados. Sim, sim, troicas e isso, e aquele dito do mais papista do que o Papa. Não estou bem a ver como seria a versão ferroviária e, sobretudo, a aérea da carreira a pedais; quem viu A Fuga das Galinhas talvez sugira alguma coisa. O Goscinny pensou na vertente marítima, como fica mostrado acima. Mas quem high above congeminou esta medida genial tem certamente imaginação fértil para colocar em prática uma sugestão deste tipo. Eu espero é um dia não me arrepender por ter escrito isto e vir a ser acusado de dar (boas) ideias a quem já as tem em abundância.