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jugular

com quem nos mata

Andamos sempre nisto. “O que é o amor?”, perguntava alguém no outro dia, no Twitter. O que é o amor, pergunta-se em quase todos os livros, em quase todos os filmes, em quase todas as canções pop, em quase todas as óperas. Enviei a quem perguntava um texto bíblico, a espantosa primeira carta de São Paulo aos Coríntios.  

 

“Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um gongo que soa ou uma campainha que retine.

Ainda que tenha o dom da profecia e conceba todos os mistérios e todo o conhecimento, e tenha tão grande fé que mova montanhas, se não tiver amor, nada sou.

Ainda que eu dê tudo o que tenho aos pobres e me entregue à chamas, se não tiver amor, nada alcançarei.

O amor é paciente, o amor é bom. Não inveja, não se gaba, não é orgulhoso. Não agride, não é egoísta, não se zanga com facilidade nem conta os agravos. Não se delicia com a injustiça, alegra-se com a verdade. Protege sempre, confia sempre, espera sempre, persevera sempre. O amor nunca falta.” (tradução minha de uma versão inglesa).

Parece, claro, mais uma definição de santidade que do amor romântico, uma relação com a humanidade que com uma pessoa. Não será por acaso que é um texto religioso – mas o étimo de religião é, afinal, “ligar” – e não há ligação mais espantosa e transcendente que o sentimento que nos faz alguém infinita e incompreensivelmente precioso, único e insubstituível (no tempo que dura) e suscita em nós toda a doçura e desvelo de que somos capazes, toda a vontade de providenciar felicidade que logramos abrigar. Mas o problema, claro, quando se pergunta o que é o amor, não é exactamente da compreensão do que se sente – mesmo se tantas vezes custa tanto a realizar e admitir – mas porquê. Porque é que amamos quem amamos? Porque é que não amamos quem não amamos? Qual o ingrediente, a qualidade, a característica, o acontecimento, o momento que distingue uma pessoa de quem gostamos, que apreciamos, que achamos atraente e interessante e até “certa” de outra que, podendo não acumular todas essas qualidades e não raro não contando mesmo nenhumas – et pour cause? -- nos arrebata e subjuga?  

 

Nenhuma resposta para isso, claro. E não é por falta de elucubrações sobre. Há 20 séculos, o romano Ovídio, no seu célebre A arte de amar (Cotovia, 2006), em que se dedica sobretudo a ensinar truques de sedução a homens e mulheres – mais como sobreviver a um coração partido --, certificava-nos de que se trata sobretudo de um jogo de estratégia. Uma guerra, até. Em que, como no tratado de Sun Tsu, o máximo efeito depende da percepção que o outro tem da nossa força e poder. Daí que, aconselha Ovídio, devamos sempre tentar colocar-nos em vantagem em todas as circunstâncias: em termos físicos, conhecer com rigor os nossos defeitos e qualidades, para esconder uns e colocar as outras na maior evidência; no relacionamento, fazermo-nos distantes, misteriosos, jamais disponíveis. Nunca “fáceis” (e não, não falo da via rápida para as libações, mas da acessibilidade emocional e da disponibilidade temporal). É uma verdade primária que, no amor como em tudo, o desejo se intensifica e desvaira na distância. Sendo porém certo que é também na lonjura (olhos que não vêem, coração que não sente) que se mata um amor infeliz ou uma paixão não correspondida. Exila-te, diz Ovídio, se queres libertar-te de alguém: uns meses longe e tudo muda. Ou, pelo contrário, não faças mais nada senão saciar-te dessa vontade, até que lhe ganhes fastio (e quando não se ganha? Ah, pois).

 

As receitas para o fim dão-nos então, em espelho, uma pista para o início. Amaremos quem saiba, por ciência ou distração, dosear a distância e a proximidade, a fome e o alimento. Amaremos quem se souber fazer belo e cobiçável. Amaremos quem encaixar no arquétipo que, desconhecido, trazemos como talismã ou maldição. Amaremos quem calhar, se calhar. Ao calhas. E deixaremos de amar tal qual. Como se um vírus alienígena nos tomasse e largasse, sem antídoto que não o tempo, sem redenção que não a memória. Ou a falta dela. 

 

(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 28 de agosto)

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