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jugular

só nos filmes

A pergunta, ironia, é de um filme: por que raio no cinema clássico americano não western (os westerns são outra loiça) as pessoas mandam as armas para o chão, como se queimassem, depois de as dispararem contra alguém? Aquilo não custa dinheiro? Não é suposto, se for caso disso, livrarem-se delas longe do corpo, a ver se ninguém liga o número de série da arma ao assassino ou recolhe as impressões digitais? Para ilustrar, dezenas de imagens de gente, geralmente homens de fato e chapéu, de James Cagney a Humphrey Bogart, passando por todos os bad guys dos anos 40 e 50 – ainda por cima gangsters, por deus, alguém imagina gangsters a mandar armas fora? – a largar pistolas e revólveres ao desbarato. O filme é de Jim Jarmuch, creio, e fui às lágrimas com essa parte.

 

Como iria decerto se alguém fizesse uma colagem de todas as coisas igualmente idiotas que só sucedem nos filmes, do acordar de mulheres já com eye liner, baton e blush àquela coisa de elas taparem o peito com as cobertas enquanto conversam no pós-acto e uns e outros saírem do leito embrulhados em lençóis ou, em alternativa, eles já de calças e elas com as camisas deles. Helllooo? Ninguém arranca lençóis da cama ou veste os jeans para ir à casa de banho, OK? Quando muito puxa de um roupão; se o problema é pudor há uma cena chamada racord. Quanto a preservativos, podem-se pagar alvíssaras por cada vez que aparecem em cenas de sexo no cinema sem correr o risco de ir à falência. Sim: milhões despendidos em campanhas contra a sida e eis a indústria cinematográfica a certificar que paixão e romantismo não se compadecem cá com medos de infecção: glamour mesmo é arriscar a vida. E as costas, já agora: tentem ser a rapariga naqueles beijos em plongé dos anos 50, arqueada até fazer a ponte, e depois digam que gastaram uma fortuna em anti-inflamatórios.

 

Do quarto para a sala: sempre que alguém telefona a avisar o protagonista para ver algo na TV, a notícia ainda vai no lançamento do pivô (trata-se pois de presciência). E, claro, mal acaba a parte que interessa desliga-se a TV. É mesmo o que costumamos fazer, desligar a TV a meio do telejornal. Como fechar a tampa do portátil quando se acaba de ler um mail ou de fazer uma pesquisa – que, claro, permite sempre descobrir algo essencial nos primeiros 30 segundos (vá-se perceber porquê, a mim isso nunca sucede).

 

Mais maravilhas do cinema (e das séries de TV): nenhuma moça perdida meses numa ilha fica com buço ou pêlos nas pernas e axilas, quanto mais cabelo baço e embaraçado. No meio do desastre de avião ou do naufrágio ou lá o que foi logrou manter consigo, a valente, o necessaire com escova, champô e amaciador mais creme depilatório e, já agora, loção solar (pena ter perdido o telemóvel e o estojo de primeiros-socorros), enquanto os seus comparsas masculinos manterão sempre barba de, vá, cinco dias. E nem uns nem outros se queixarão de falta de papel higiénico, desodorizante ou repelente de insectos – apesar de dormirem ao ar livre, os nossos amigos nunca acordam cheios de babas na cara. Podem ser atacados por jacarés, canibais, dinossáurios extintos há milhões de anos ou insectos do tamanho uma casa, mas melgas está quieto. Já na época medieval e no renascimento só os maus têm dentes podres, cheiram a bedum e têm má pele. Os outros, mesmo os embarcadiços dos descobrimentos, andam de faces rosadas, barba aparada e roupinha de veludo. E nem mesmo na aldeia medieval mais miserável se dá pela falta de esquentador: em farrapos e esfomeados graças ao terrível xerife de Nottingham, mas limpinhos.

 

Isto para não falar daquela coisa de qualquer carro explodir no acidente mais totó, de qualquer energúmeno cair para o lado inanimado quando o herói ou a heroína lhe dá uma pêra ou um pontapé, de nas lutas de um contra muitos os mauzões nunca atacarem todos ao mesmo tempo – há um código de ética até para os vilões, caramba – de todas as competições serem ganhas no último segundo quando, bem entendido, já ninguém esperava, de nenhum automóvel partir a suspensão no meio das perseguições mais insanas e de nunca se ter de pagar o couvert quando se sai do restaurante antes de vir a comida. Sim: é cinema, mas mesmo assim. 

 

(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 18 de setembro)

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