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jugular

The zegalha strikes back

Alguém poderá recordar-se disto. Coisas de férias e de silly season. Ou não. Decerto que não. Pelo menos, para mim. A verdade é que desde essa altura redescobri certos prazeres simples que julgava mais ou menos desaparecidos. Um deles, o de conduzir. E este, oh compatriotas de tempo curto, ritmo acelerado e muitas, muitas preocupações pendentes, gente de semblante carregado e de permanente nuvem a ameaçar aguaceiro a 10 cm acima da cabeça, pode ser relaxante, tranquilo e permitir um redescobrimento de muita coisa. Por exemplo, de uma via tão feia e desinteressante como o IC 19.

A primeira, tão desconcertante como dotada de evidência cartesiana, é que não preciso de ir a 100 ou a 110, a passar por cima de limites de velocidade, a ziguezaguear e a precipitar a tromba do meu veículo para cima da traseira do do vizinho dianteiro, a travar e a acelerar, a apitar e a fazer sinais de luzes, para chegar ao meu destino. É evidente? Não parece. Se demoro 17,4 minutos assim, demorarei mais 3,7 se for a 80. Ou 4,3. Ou 6,1. Não importa. 6,1 minutos não dá para nada, não é poupança que se veja. Mais do que isso demoro eu, quantas vezes, na fila do supermercado, a coçar o nariz, aturar gente parva, a bovinar em frente à tv ou a fazer outra inutilidade qualquer.

Não estou, evidentemente, a falar em situações de verdadeira pressa, que as há, e não são poucas. Estou a falar das correntes e rotineiras, daquelas em que aceleramos porque sim, que passamos os limites porque sim, porque sim, porque sim, sei lá eu porquê? Aceleramos porque somos supostos acelerar, temendo uma buzinadela, que nos achem uns palonços ou uns otários, porque em cada um de nós há um puto que detesta ser ultrapassado, que sonha com corridas, que acha que uma aceleradela ou uma ultrapassagem é uma vitória, que usa o automóvel para aliviar a tensão, a estrada como arena, o vizinho como gladiador. Em cada português palpita um Michel Vaillant de pacotilha, um Fittipaldi de trazer por casa, ou, mais ainda, um Charlton Heston de toga azul, um Judah Ben-Hur a conduzir os garbosos corcéis contra o tirano Messala. Numa autoestrada, em percurso de 400 km em que há uma diferença de ganho em ir a 90 ou a 130, ainda se pode entender. Numa via rápida, num circuito urbano ou suburbano, em ziguezagues e sem uso de pisca, é ridículo e estúpido. Alguém que faça as contas ao consumo de combustível, por exemplo. Nem falo dos acidentes estúpidos.

Um dia, já depois da zegalha, forcei-me a não passar os 80 km/h e a não sair da faixa da direita. Confesso que doeu. Não foi fácil vê-los a passar e mais do que uma vez, à primeira distração e sem saber bem porquê, zum!, lá ia eu atrás. E depois voltar a abrandar e meter-me na faixa (vazia) da direita era como obrigar um puro-sangue a fazer trote. A segunda correu melhor. O bom tempo ajudou. De tal maneira que, à terceira, a coisa tornou-se um prazer. O prazer de não ter que ir com quatro olhos a vigiar três espelhos mais o conta-quilómetros, a sinalização e o resto das rotinas da condução, a pressionar o da frente a ver se se desvia, a manobrar pela direita para aproveitar a folgazinha momentânea. You know what I mean. Mas também, e sobretudo, o prazer de ver o quadro inteiro e global. Pela primeira vez, senti-me humano e não uma besta de corrida com talas laterais.

E descobri várias coisas, hoje mesmo, na tal via feia e desinteressante que já percorri tantas centenas de vezes. Exemplos? deixa ver: um curioso espécimen de motel, chamado "A Toca", cujas instalações fazem jus ao seu nome; uma estalagem misteriosa, com fama de assombrada, que existe pelo menos há 40 anos e que nunca percebi se existe mesmo ou se é só fachada; belos graffitis; uma cruz de madeira com enfeites regularmente renovados; uma mata de pinheiros; um curioso cartaz com esotéricos dizeres: "KFC BBQ Beast"; uma pista-rampa de gelo. Tentei encontrar o que há algum tempo descobri, mas que não consegui localizar: um registo do nível da água numas cheias remotas. Não foi preciso ir a 40 na faixa do meio, com a mãozinha papuda de fora, como parece moda renovada, neste verão fora de época. Fiquei a pensar o que oferecerá a A5 ou a Calçada de Carriche. Terei demorado mais uns minutos do que os meus companheiros de estrada. Mas há muito tempo que não fazia o percurso com tão poucos obstáculos à minha frente e tão pouca tensão. Cheguei melhor do que parti. E isso, convenhamos, já não é pouco. E são tantos os incómodos e as perturbações a que não podemos escapar que eliminar um, e converter uma tensão potencialmente cefaleica em prazer relaxante assume foros de uma pequena vitória, a saborear assim neste tempo de reveses.

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