Já Chega
Há anos que o sector cultural está, em Portugal, sujeito a um discurso dominado pela demagogia e a irracionalidade. Depois da denúncia dos ditos "subsídio-dependentes" levada até à exaustão sem que ninguém se digne a verificar onde, quem, como, porquê e para quê a existência de um sistema de apoio público às actividades culturais, depois do indigente discurso sobre a questão do público, eis o culminar da irracionalidade com o aumento de 6% para 23% da taxa de IVA nas actividades culturais.
Em todas as actividades culturais? Não, todas não. Qual aldeia gaulesa o sector do livro escapa. Não que eu ache que o sector do livro devesse estar incluído. Só posso aplaudir que ele não seja abrangido, mas não deixa de ser confrangedor que o único sector que o Secretário de Estado conhece em profundidade, seja também o único para o qual arranjou argumentos convincentes para evitar esta subida brutal da taxa do IVA.
Mas voltemos à pobreza do discurso dominante sobre subsídio-dependentes e a falta de público. Pensar na formação de novos públicos é pensar em formas de garantir uma produção artística e cultural regular, é criar condições para o desenvolvimento de um sector privado ainda muito frágil, é perceber que um sector cultural dinâmico e saudável permite que um investimento relativamente pequeno tenha um retorno considerável tanto em termos de crescimento económico como em termos de criação de emprego. No próprio sector mas também numa serie de áreas que a ele se associam. Considerar isoladamente apenas um destes aspectos é promover o discurso fácil que cria bodes expiatórios em vez de propor soluções.
Defender a criação cultural é defender uma economia cultural, é defender o direito ao acesso à cultura logo o público, é estimular a economia nacional.
Ao nível dos países europeus isto é uma evidência. Para todos os países emergentes isto é uma evidência. Até para países em dificuldades isto é uma evidência. Não é por capricho nem diletantismo, “qualidades” habitualmente atribuídas ao sector artístico, que a Irlanda, apesar de também estar na tormenta da crise, protegeu e estimulou o seu sector cultural criando inclusivamente o ministério da Cultura.
Em Portugal, a falta de visão estratégica para o país não só acaba com o Ministério da Cultura, como insiste em poluir a opinião pública com a ideia de que na origem de reais dificuldades, em certas áreas, em aceder a um público mais amplo está um intencional divórcio da criação artística com esse mesmo público.
O programa de governo para a Cultura pouco mais é do que a legitimação desta bacoca acusação feita aos criadores portugueses, esses seres insensíveis aos apelos de um público que se idealiza faminto de cultura, num atitude egocêntrica que o Estado, sempre esse "malfadado" Estado, teria vindo a alimentar por métodos certamente duvidosos no intuito de prejudicar um mercado florescente.
De nada tem serve tentar demonstrar que a realidade não é essa. Apontar os progressos feitos tanto ao nível nacional como regional no rigor, transparência e eficácia na atribuição e execução dos apoios atribuídos. Dar provas concretas dos benefícios e da necessidade de conciliar um sistema misto, público-privado, até e sobretudo para o sector privado. Recomendar os estudos feitos em todo o mundo que demonstram que o grau de desenvolvimento de uma sociedade se mede pela sua pujança cultural. De nada serviu os próprios arautos deste triste discurso oficial encherem a boca com os números do relatório Augusto Mateus. A nova atitude, que se auto-proclama de rigorosa, aceita como pressuposto de verdade que a Cultura não se desenvolve plenamente por responsabilidade dos criadores e dos seus acólitos produtores e programadores, que ignoram o público. Agentes culturais, assumam que todo o vosso trabalho nas últimas décadas foi vão e mal intencionado.
Francisco José Viegas anunciou que, no intuito de promover a reconciliação com o público, os planos de actividade das entidades culturais que beneficiam de apoios do Estado seriam analisados pelos seus serviços sob esse prisma. Como seria expectável foram muitas as vozes a levantarem-se na defesa da autonomia criativa. Incomodado pela "suspeita de dirigismo cultural" o Secretário de Estado respondeu que "quem o conhece" sabe que apenas pretende "dar a sua opinião". E, como prova da sua abertura, convida-nos para uma reflexão, a dez anos, para estudar o problema.
Significa isso que devemos perguntar a quem conhece o Sr. Secretário de Estado o que ele pensa sobre esta irreflectida subida do IVA?
Serão necessários dez anos de reflexão profunda para se perceber que esta medida vai ter consequências desastrosas para o acesso dos portugueses às actividades culturais? Será que ignora que as receitas arrecadas são nulas ou quase nulas em termos de redução de défice?
Se há falta de público onde se espera ir arrecadar os milhões necessários para combater o défice? E ninguém se lembrou que, sobretudo em período de crise, quanto mais o preço do acesso as actividades culturais afugentar o possível publico menos relevantes serão as receitas? Mais prosaicamente quem contabilizou o impacto negativo deste anúncio no sector e em todas as áreas adjacentes?
O único mérito do anúncio desta medida é vir relembrar que o problema com a demagogia é que há sempre um momento em que, qual “arroseur arrosé”, ela se vira contra os seus proclamadores. Acredito que o mais incomodado com ela seja o próprio Francisco José Viegas, mas o que pode um secretário de Estado face a um Ministro das Finanças?