crónicas para brutos
Não é nada que não se esperasse. Mas não deixa de me causar impressão a forma como as crónicas, nos poucos e cada vez mais monocórdicos títulos da nossa imprensa escrita, venham gradual mas seguramente baixando a fasquia da exigência do discurso, da elevação da linguagem e da clareza da análise. Nos tempos em que a disciplina de "iniciação ao jornalismo" fazia parte dos planos curriculares dos 10º e 11º anos de escolaridade, foi-me ensinado que a "crónica" era algo de especial. Não era um "editorial", nem uma "notícia", muito menos uma "reportagem". Era uma espécie de reflexão ponderada, um ensaio compacto de escrita cuidada, uma pequena jóia que só alguns conseguiam alcançar. Um "cronista" dos nossos dias (que nós ainda misturávamos com os cronistas medievais) era alguém capaz de produzir opinião, mas também literatura. E alguns exemplos eram lidos e mostrados nas aulas. Qualquer um podia fazer entrevistas e escrever notícias. Mas crónicas não.
Quase três décadas passadas, é com um misto de sorriso sarcástico e de sabor amargo que verifico que uma boa parte das "crónicas" que a nossa imprensa produz, diária ou semanalmente, não passa de um caldo de banalidades, mau português, egos inflados, agenda política e fel, muito fel. A reflexão avisada deu lugar à bojarda, a opinião lúcida cedeu terreno ao ataque pessoal, a crítica fundamentada recuou perante a insinuação, sugerida com duvidosa intencionalidade, quando não a simples intriga a roçar a calúnia. Nem falo da qualidade do português; basta-me a ausência de ironia, de delicadeza, de recorte literário. A linguagem tem a estética de um calhau de calçada, a limpidez de um naco de carvão, o sabor de uma malga de caldo insípido. É literariamente inerte e estilisticamente desinteressante. Crónicas para brutos.
Vem isto a propósito da mais recente "crónica" de Henrique Raposo no Expresso. Um jornal dito de "referência", o semanário de maior tiragem nacional. Ou um blog caceteiro? Fiquei com dúvidas. No texto, o autor não é capaz de alinhavar duas ideias coerentes. E originais, já agora, se não fosse pedir muito. Podia elaborar uma reflexão sobre o sentido de voto do PS no Orçamento de Estado; uma análise política; ou económica; ou ambas. Podia debruçar-se sobre o interior do partido, as suas fraturas e desafios; podia tentar um ensaio sobre as orfandades políticas em Portugal; ou, até, um exercício irónico sobre bonecreiros, marionetas, fiozinhos de nylon ou controles remotos, uma vez que o tema escolhido gira em torno das alegadas pressões e influências de José Sócrates junto do PS. Em vez disso, Henrique Raposo assume-se como alambique de ressentimentos e de maldizer, destilando fel insosso sobre a "gentinha socrática", "esta fauna" e os "leãozinhos [sic] de Sócrates". "Gentinha"; nem é capaz de dizer nomes. Um raciocínio pobre e falacioso, uma exposição rasteira e rancorosa, um texto bruto e grunho. Não faltará muito, adivinho, para se descer mais um degrauzinho na degradação cronística e passar-se à obscenidade. "Os cabrões dos apoiantes do filho da puta do Sócrates". Lá chegaremos.
Já agora, um acrescento: uma vez que o "gentinha socrática" já ganhou espaço na nossa imprensa, como se poderá começar a apelidar os apoiantes indefetíveis do atual primeiro-ministro, como Raposo e outros? "a ralé leporídea"? "a canalha cunícola"? ou simplesmente "as caganitas de Coelho"?

