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O Grão-Ducado da Seara Alheia

Apesar de ser um acérrimo defensor, contra o zeitgeist que vai durando, do espírito polímato do Renascimento, devo admitir que há ocasiões em que percebo as vantagens da especialização: protege-nos contra as tentações da ignorância, contra a falta de humildade. E, sobretudo, contra a falta de génio.

 

É que uma coisa é ser polímato, outra é ser genial. O Renascimento conheceu uns quantos polímatos geniais, a Revolução Americana também. Mas são casos raros. E, sobretudo, quando sucedem, notam-se. Ora, uma das desvantagens da polimatia é ser como a nitroglicerina: tem que ser manejada com cuidado e, de preferência, por especialistas. Caso contrário, lá diz o povo, não corre bem meter a foice em seara alheia. Sai asneira, como soe dizer-se. Muitas vezes, sem que o autor perceba as asneiras que está a dizer e até tenha algum orgulho, como dizia Montaigne, na sua própria estupidez.

 

Daí que a melhor defesa contra os males da polimatia seja mesmo o génio. Fulano tal acorda de manhã, no século XV e diz: "eh, pá, vou inventar um pára-quedas!" e zimba, inventa. Vai dormir feliz, naturalmente. No outro dia, acorda e pensa "eh, pá, hoje vou pintar o melhor quadro de todos os tempos de uma mulher a sorrir!" (quem é que nunca pensou nisto?) e pumbas, pinta. Ora, tudo isto poderia ter corrido extremamente mal, ou pelo menos, não ter ficado para a História. Excepto se o fulano em questão se chamar Leonardo e nos chegar de uma terreola chamada Vinci.

 

Dá-se o caso, de a maioria de nós não nos chamarmos Leonardo e não sermos de Vinci. Alguns de nós chamam-se mesmo João, de apelido Duque, e chegam-nos de Portugal. Ora, mandaria a prudência, que não sendo nós especialistas em Direito Constitucional, em Ciência Política (ou mesmo, Política, for that matter), não fizéssemos considerações formais sobre estes temas.

 

João Duque, presidente do Grupo de Trabalho para a definição do Serviço Público de Rádio e Televisão, é um emérito professor de gestão. Não têm faltado textos nos media clássicos e na internet sobre a boçalidade das suas declarações e não tenciono referir-me a elas. Gostaria de colocar o foco no facto de o preclaro XIX Governo Constitucional ter decidido constituir um Grupo de Trabalho para a definição do Serviço Público de Rádio e de Televisão liderado por um professor de gestão. Eu sei que os tempos são de tecnocratas mas passar uma mensagem mais clara de subjugação da Liberdade de Comunicação Social a interesses económicos e políticos seria difícil. As declarações de João Duque, claro, ajudaram. São muito graves, é verdade. Mas tão ou mais grave é o facto de o Governo achar que João Duque, um emérito professor de gestão, tem o perfil para liderar tal Grupo de Trabalho. Ele não se chama Leonardo, nem vem de Vinci.

 

Ao invés, e tendo em conta que se discutem matérias que os nossos Constituintes entenderam constitucionalizar (e que Duque, de uma penada, entende extinguir) pensar-se-ia que teríamos um político a liderar o Grupo de Trabalho. Ou, se quiséssemos mesmo dar a ideia de que é um verdadeiro Grupo de Trabalho, técnico, independente e apolítico, um Jornalista experiente ou um Constitucionalista especializado em Comunicação Social. Depois que viessem as contas e as limitações financeiras. É a gestão que tem de se adaptar ao Estado de Direito. E não o Estado de Direito que deve ficar subjugado ao Grão-Ducado da Seara Alheia.

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