christopher
tinhas um cabelo horrível. e os dentes também não eram famosos e tinhas deixado crescer a barriga, apesar de continuares a portar-te como se fosses irresistível (mas quem está livre disso, right?). eras desdenhosamente vaidoso em cada sílaba da voz upper class (que não eras), arranhada pelo whisky e pelo tabaco (a única vez que falei contigo, pelo telefone, seriam para ti, num quarto de hotel em la, umas 10 da manhã e pensei 'dás nele à grande, tu'), e adoravas ouvir-te. e aposto que adoravas ler-te -- como qualquer pessoa que aprecie frases poderosas, o perfeito domínio da língua, ironia e inteligência em colusão guerreira contra a estupidez, contra toda a estupidez (e é tanta).
e eras sempre veemente, oh tão sempre tão veemente, como se cada frase fosse feita para púlpitos de igreja (ironia, hã?), mas isso, que para muita gente deve ser um defeito insuportável, para mim era parte razoável, mais que razoável, do teu encanto, do teu insuportável encanto. cada texto teu na vanity fair parecia sempre pequeno de mais -- e ao lado dele tudo o resto tão sem graça nem wit, tão sem torrente, tão sem.
porque eras capaz de tão melhor ficava sempre furiosa contigo quando lia coisas tuas menos boas. como a auto-biografia e partes do god is not great (muitas partes, na verdade) e os artigos sobre o cancro (desculpa, não gostei de quase todos, mesmo se percebi que tinhas de os fazer). odiei tanta coisa na tua auto-biografia -- falares das tuas 'experiências homossexuais', tudo bem, mas tinhas de dizer que tinham sucedido com membros do gabinete de thatcher? -- mesmo se me impressionou a forma como falaste da tua família (a distância terrível, inultrapassável, entre ti e o teu pai, o teu amor irremediável pela tua mãe e pela sua tragédia) e como escreveste sobre o soldado morto no iraque, na guerra que como eu defendeste (e não imaginas como foi bom descobrir que alguém de esquerda, e logo tu, podia pensar o mesmo, e afrontar toda a sua ala do mundo, o seu lado das trincheiras, pelo mesmo motivo) e onde descobriste que alguém morreu por ti, exactamente por ti, pelas tuas palavras, pela tua vez, em vez de ti, e tiveste a coragem de te confrontar com isso e de dizer que não sabias se eras capaz de estar à altura (como estarias?).
estavas longe, muito longe da perfeição, fizeste coisas estúpidas e algumas bastante imperdoáveis ou pelo menos difíceis de entender (como contradizeres o teu amigo blumenthal quando testemunhou a negar que tinha dito mal da monica lewinsky, permitindo que fosse suspeito de perjúrio), tinhas momentos de algum ou muito mau gosto e sobretudo eras constantemente traído pela tua vaidade e pelo teu desejo de auto-engrandecimento (li uma crítica à tua auto-biografia que era terrível mas exacta nisso mesmo, imagino que te tenha doído).
mas escrevias tão bem. e eras tão tão inteligente, e usavas e gozavas tão bem a tua inteligência, e querias tanto ser um guerreiro da palavra contra tudo o que é mau, e querias tanto estar na primeira fila dessa guerra, bater-te com as tuas espadas nuas contra a maldade, a estupidez, o preconceito, o totalitarismo, a superstição. contra os bárbaros, sempre, sempre. ao ponto de teres admitido essa coisa inadmissível -- que te tinhas sentido quase feliz quando as torres gémeas caíram, porque de repente a guerra infinita entre o bem e o mal estava ali, no centro do mundo, e não era mais possível negá-la ou recusar um lado, não era mais possível dizer que não era preciso escolher.
tu escolhias. escolheste morrer a combater ou a citar -- boa literatura, orwell ou wilde, talvez. não sei como morreste. mas morreste, christopher. morreste neste ano terrível, o ano em que tudo parece mexer em todo o lado, para o bem e para o mal, e em que a história voltou à bruta, trazendo consigo ameaças e promessas de que ninguém consegue adivinhar o devir.
morreste logo agora, christopher. vais fazer muita, tanta falta. ao mundo -- e a mim.