Da mistificação
Num artigo publicado no Negócios, Eva Gaspar diz que Krugman:
corrobora as conclusões do estudo que sugere que, nem num cenário mais benigno, Portugal e Grécia poderiam regressar à dinâmica de endividamento que tinham antes da crise, porque ela era, já de si, insustentável: no prazo de dez anos, em 2021, a dívida estaria, em ambos os casos, acima ou perto do equivalente a 150% do PIB. Krugman admite, deste modo, que Portugal e Grécia poderiam não ter alternativa a uma política de austeridade – que ele tanto tem criticado.
No post que Eva Gaspar cita, Krugman não 'corrobora' nenhum estudo, limita-se a recomendá-lo - o que é inteiramente diferente de corroborá-lo - e recorre a uma passagem desse estudo para reafirmar, pela enésima vez, que a (chamada) crise da dívida soberana não é uma crise de finanças públicas. E não sei onde Eva Gaspar foi buscar a ideia de Krugman ter admitido que Portugal e Grécia poderiam não ter alternativa a uma política de austeridade. Na melhor das hipóteses, Krugman não contesta que o estudo demonstre Portugal e Grécia tivessem problemas de finanças públicas independentemente da crise financeira. Dizer que isto é admitir que Portugal e Grécia poderiam não ter alternativa a uma política de austeridade não só envolve um salto lógico, como é contrário a tudo o que Krugman defende.
Em vez atribuir posições que Krugman não defende para sustentar teses sobre a inevitabilidade da austeridade em Portugal e na Grécia, Eva Gaspar podia ter escrito sobre o tal estudo. Como Krugman, eu também acho que o estudo é interessante. Mas não é interessante por ser bom. É interessante por, mais uma vez, revelar o universo paralelo em que muitos economista vivem e a fraude intelectual em que se tornou grande parte da 'ciência' económica dominante.
O estudo tem duas parte. A primeira limita-se a descrever os contributos do défice primário, do peso do serviço da dívida e do crescimento económico para a evolução do rácio dívida pública em percentagem do PIB no período 2008-2010. A segunda pretende fazer um juízo sobre sustentabilidade desse rácio. E aqui entramos no domínio do aburdo:
Debt-to-GDP ratio projections can be used to assess EU countries’ fiscal stance before the crisis, and to consider what the trend would be if the economy were to perform (on average) as in the past
Greece and Portugal exhibit an unsound debt-to-GDP ratio evolution in both scenarios: their previous stance is unsustainable in the future. On the contrary, Ireland’s stance before the crisis was sound (scenario 1) and it would lead to a lower debt-to-GDP ratio. Concern regarding Spain and Italy’s debt sustainability cannot depend on their past stance, which is sound particularly for Spain
Gianluca Cafiso, antigo consultor do BCE, reduz o conceito de ceteris paribus (tudo o resto constante) ao absurdo. Cafiso acha que faz sentido falar da dívida pública e do crescimento como se estas fossem variáveis independentes, sem qualquer relação endógena. Pior: Cafiso ignora a relação entre dívida pública, crescimento económico e dívida privada (interna e externa). Altas taxas de crescimento e baixos níveis de dívida pública antes da crise só podem ser considerados positivos se ignorarmos o crescimento exponencial do endividamento privado e a bolha imobiliária que os tornaram possíveis. Pressupor que o passado recente de Espanha e Irlanda em termos de dívida pública e crescimento do PIB são relevantes para prever o futuro pode ser muita coisa, mas não é certamente uma forma de contribuir para compreender a realidade, passada presente e futura, destes dois países. Ao contrário do que diz Cafiso, este estudo não examina como os rácios dívida pública-PIB aumentaram entre 2008-2010, porque uma descrição não é uma explicação. Este estudo não permite fazer qualquer tipo de juízo sobre a sustentabilidade deste ou daquele país porque, para fazer juízos, pelo menos juízos relevantes, convém que se compreenda o fenómeno que estamos a avaliar. E isso é coisa que este estudo manifestamente não faz nem permite fazer.