Os Cinco Pecados Mortais anti-Acordo Ortográfico, parte I
Quando, em 1492, Isabel, a Católica, perguntou para que servia a gramática de língua castelhana que Antonio de Nebrija acabara de escrever, alguém lhe respondeu que "después que vuestra Alteza metiesse debajo de su jugo muchos pueblos bárbaros y naciones de peregrinas lenguas, y con el vencimiento aquellos terían necessidad de recebir las leyes: quel vencedor pone al vencido y con ellas nuestra lengua". Do lado português, a primeira gramática, de Fernão de Oliveira, já enunciava, em 1536, que um objetivo era "que a possamos ensinar a muitas outras gentes e sempre seremos delas louvados e amados, porque a semelhança é causa do amor, e mais nas línguas" mas, "agora que é tempo e somos senhores", era chegado o momento de fazer uso da portuguesa, "porque melhor é que ensinemos a Guiné cá, que sejamos ensinados de Roma". Pouco depois, João de Barros completava o raciocínio: as armas e os padrões de pedra que os portugueses deixavam além mar acabariam por ser consumidos pelo tempo, mas não a língua e os costumes de Portugal, "pois é certo que mais pode durar um bom costume e vocábulo, que um padrão".
A língua sempre foi um instrumento do império. De todos os impérios, desde o latim romano ao russo soviético, até ao inglês americano da atualidade. Para uma visão global sobre o tema aconselho a obra de Nicholas Ostler, Empires of the Word (Harper Collins, 2005). As pp. 380-395 são dedicadas à expansão da língua portuguesa e nelas pode ser encontrada uma breve síntese explicativa do modo como se tornou, nos séculos XVI e XVII, uma língua franca na Ásia das Monções e, mais importante, como veio posteriormente a conhecer um poderoso impulso no continente sul-americano com o alargamento das fronteiras do Brasil, até se tornar hoje a 7ª língua mundial com 176 milhões de falantes, dos quais a esmagadora maioria são brasileiros: "o crescimento do português até à sua atual situação (...) é devedor, em praticamente tudo, do desenvolvimento económico, e consequente crescimento populacional, do Brasil ao longo de 300 anos, e muito pouco da sua difusão a partir de Portugal enquanto língua da administração colonial ou como língua franca na Ásia, tendo ambos estes fatores atingido a sua máxima expressão há mais de 400 anos" (p. 395, trad. minha).
Hoje há língua, mas já não há império. O português é um património e uma riqueza de todos aqueles que a utilizam, um elo de ligação que une muitos milhões, o legado de um império mas já não o seu veículo de difusão e afirmação. Ora, um bem comum deve ser gerido de modo comum, e quando há necessidade de acordo entre as partes, esse entendimento deve ser obtido por consenso, em prol da sobrevivência da riqueza que todos partilham e que é, em última análise, património de todos. Um património ameaçado e em risco. Portugal, como berço da língua, deveria estar consciente deste facto. Ao invés, na interminável novela do Acordo Ortográfico, há quem continue a exprimir tiques de potência colonial, arrogantes e insuportáveis, reclamando uma exclusividade pseudo-purista e invocando uma hegemonia tão irreal quanto anacrónica. A oposição ao Acordo, interminável novela que há mais de 20 anos anima de forma intermitente os brios nacionais e inflama o ego inchado de alguns lusitos, incorre, fundamentalmente, em cinco erros fundamentais, por ordem decrescente de importância: estreiteza de vistas, ignorância, arrogância, preguiça e reacionarismo.