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Os Cinco Pecados Mortais anti-Acordo Ortográfico, parte II

Muito do que se escreve, lê e comenta acerca do Acordo resulta de simples preconceito ou de deficiência de informação; há também teimosia, bairrismo, disparate puro e muito de "protesto" (contra a crise, contra a agitação do presente, sabe-se lá que mais?). Uma boa amostragem pode ser vista na página "ILC contra o acordo ortográfico", sobretudo nos comentários. Apreciei, em especial, a parte respeitante à subscrição que dela fez Ricardo Araújo Pereira, a 13 de janeiro. Os comentários na página do Ricardo, no Facebook, no mesmo dia, são também interessantes. Numa palavra, é uma espécie de bazucada em todas as direções e um "não porque não". Mas, como comecei, reduzo tudo isto a cinco erros principais. 

Estreiteza de vistas - consiste, fundamentalmente, na incapacidade de vislumbrar a floresta e na fixação no galho de uma árvore. Ora, o português passou de instrumento do império a alvo de impérios alheios. A grande ameaça à projeção e sobrevivência da língua portuguesa no mundo não está na consoante muda ou na mínúscula nos meses do ano, mas sim na dominância imparável do inglês, que não apenas se espalha em efeito mancha de óleo e substitui gradualmente outras línguas, como as penetra profundamente. Setorialmente, e ao que sei, afeta em especial Angola e Moçambique, enquanto que na Guiné a maior ameaça provém do francês do Senegal; o caso de Timor é deveras especial, mas mais do que o bahasa indonésio do período 1975-1999, é, uma vez mais, o inglês do vizinho australiano que está em causa. Há, portanto, uma dimensão global, fundamental, a considerar, mas muita gente prefere apegar-se à questiúncula do ótimo ou da ação e achar que é uma cedência inadmissível, enquanto utiliza alegremente o parcar a viatura, o por defeito ou o basicamente. Há depois, evidentemente, a absorção de palavras e expressões abreviadas, resultante da utilização de redes sociais e de mensagens escritas de telemóvel. Curiosamente, nunca vi ninguém insurgir-se contra isto, porque não tem alvo visível e identificável (ao contrário do português do Brasil) nem avatares ou eminências mais ou menos pardas, a dirigir o CCB, a fazer petições ou a largar bitaites para a imprensa, nem é visto como uma "cedência", mas sim como uma "modernidade".

Ignorância - Uma língua é, por definição, viva e dinâmica. Os dicionários estão cheios de vocábulos arcaicos que cairam em desuso, e todos os dias surgem novas palavras. Ocasionalmente, é necessário adequar a sua expressão escrita, tendencialmente conservadora e sempre atrasada, à sua utilização prática e quotidiana de quem a utiliza. Esta relação é desigual: é a escrita que se adapta e não o contrário. Por muito que se tente, não é possível impor formas na escrita aos milhões que falam a língua. Por exemplo, mesmo que a forma correta e recentemente dicionarizada seja "correio eletrónico", a utilização de "email" está generalizada e é imparável. Já a sobrevivência de formas arcaicas de grafar palavras correntes pode ser aparada e corrigida. É uma opção correta e inevitável, caso contrário estariamos a escrever como há 5 ou 6 séculos, num desvio intolerável e ridículo entre fala e escrita. Por outro lado, a difusão do português levou a diferentes evoluções na grafia. Uma uniformização elementar da escrita é, a todos os títulos, salutar e ocorreu em diversos momentos. Por fim, o Acordo incide sobre um pequeno número de vocáculos, no universo da língua portuguesa, e é apenas um ajustamento corretivo da sua ortografia. Fazer corresponder a tudo isto a ideia de que "temos que passar a falar brasileiro" roça o ridículo, depois de chafurdar na demagogia. O Acordo não só não constitui qualquer ameaça à língua, como é um importante contributo no sentido oposto, ao definir uma norma ortográfica comum, do Acre a Los Palos (ou Macau).

Arrogância - "Sou totalmente contra este Novo Acordo Ortográfico, mais importante que tudo está a LÍNGUA PORTUGUESA QUE FAZ PARTE DO NOSSO PAÍS E DA NOSSA HISTÓRIA. Até porque fomos nós que ensinámos muitos Povos a falar na altura das Descobertas". Este delicioso libelo sintetiza praticamente tudo: a língua é nossa e fomos nós que ensinámos muitos a falar (depreendo que antes do Infante zurrasem ou grunhissem); isto, evidentemente, no País das Maravilhas. A realidade de 2012 diverge um pouco: há 10 milhões de falantes do "português de Portugal" num universo de 176 milhões. As melhores perspetivas de crescimento da língua estão em África e, sobretudo, na América do Sul, enquanto que na Europa é insignificante. Os tempos do galaico-português já se foram há muito; os do império também. Talvez fosse a hora de acordar para a realidade e de acertar os relógios. O português é uma das grandes línguas mundiais, não é o lituano ou o romeno. Mas à vezes penso que haja quem assim preferisse. 

Preguiça - Remeto, uma vez mais, para os comentários acima referidos: tanto tempo a aprender a escrever e agora ter que aprender outra vez? Dá trabalho, já não tenho idade para isso, era o que faltava. Motivo? razão? não importa, desde que dê trabalho, a resposta é não. Não há problema: o mundo continua a girar; afinal, há quem escreva com aparo e tinteiro toda a vida, usando "ph", "ll" e "z".

Reacionarismo - a aversão ao que é novo, a resistência à mudança, a desconfiança acerca de hábitos enraizados, pelo sim, pelo não, é melhor não; a permeabilidade aos esqueletos agitados; o medo é sempre uma boa estratégia, e resulta quase sempre. Outro comentário, na mesma página, diz: "Estamos no Brasil ou em Portugal?? Qual é a lingua original?? Será que somos nós que nos temos que adaptar, ou são eles que tem que aprender a escrever o Português de Portugal?". Não sei bem como se obriga 150 milhões a "escrever o Português de Portugal". Como não se consegue, ahhh então amuo e pronto. É mais ou menos isto.

Termino com uma ode à língua portuguesa de um autor do século XVII; puro exagero elogioso, mas isso não importa; importa, sim, o sentido da sua universalidade: "es tan copiosa la lengua Portuguesa, que no solamente tiene todas las palabras de las otras, sino muchas más. Y si otra lengua tiene alguna de las dichas palabras, es tomandola de la Portuguesa. (...); La segunda qualidad que ha de tener la lengua, es la buena pronunciacion: y esta en la lengua Portuguesa es muy facil, grave, y suave (...) y assi digo, que todas las naciones pueden con mucha facilidad pronunciar el Portugues. Otra cosa se sigue tambien de ser la lengua Portuguesa buena de pronunciar, y es, que haze habiles a los Portugueses para tomar otra qualquiera con gran brevedad, y perfecion, de manera, que yendo a terras estrañas, no se diferencian de los naturales en el hablar" (António de Sousa de Macedo, Flores de España, Excelencias de Portugal (1631).

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