Populus in res publica sua est imperator (?)
À hora que escrevo (porque nesta matéria o tempo mede-se agora em horas) a Grécia é um país destruído. A questão que ainda se pode discutir é, pois, a da medida da salvação conseguida ou da desgraça maior evitada.
Com o agudizar da crise financeira de 2008 e a sua mutação em crise das dívidas soberanas, que perdura, a opinião pública europeia (para não ir mais longe) tem sido confrontada com um cenário maniqueísta, que tem a vantagem de facilitar as manchetes e as análises: há a bancarrota ou há ajuda externa. A primeira é a chegada do Anti-Cristo e um Juízo Final de proporções, evidentemente, bíblicas e a segunda o mal menor, entretanto, estilisticamente discorrido e decomposto em: austeridade, ajustamento, etc. Tudo porque há dívidas e, dê lá por onde der, elas têm que se pagar, independentemente das circunstâncias.
Eu gosto de regras. Para vos dizer a verdade eu adoro regras. É por isso que sou jurista, que sou investigador em direito, que sou docente. As duas principais razões pelas quais adoro regras (simplificando) resumem-se a isto: as regras libertam e as regras limitam.
A primeira não importa agora para a economia deste texto, mas apela à ideia, muito contrária ao que vou percebendo do espírito luso, de que as regras (boas e bem feitas) simplificam e melhoram a nossa vida, libertando-nos de chatices, de perdas de tempo, e, por isso, dando-nos liberdade para fazer coisas que nos dão prazer e felicidade. Mas é a segunda dimensão que me interessa aqui: as regras limitam. Pessoas que gostam de regras, que gostam verdadeiramente de regras, não se bastam em ter nas regras a sua zona de conforto. Elas gostam de regras porque sabem que as regras traçam a fronteira entre a civilização e a barbárie, entre o conhecido e construído e o desconhecido e por construir, entre a luz e as trevas. Isto, ao contrário do que possa parecer não serve (embora já tenha servido no passado a pessoas sinistras) para defender a obediência cega no direito. Serve, exactamente ao contrário, para nos fazer perceber que as regras só podem servir para o que foram criadas e que não abarcam tudo. O Direito não faz milagres. Há mundo para além das regras e nesse mundo não faz sentido apelarmos para elas. Pelo contrário, é errado, é injusto.
Nestes momentos, do fim do direito, do fim das regras por confronto com situações para as quais não há regras, há que ter a coragem de parar e pensar numa solução, de acordo com valores. Como no princípio dos tempos, é sobre valores que as regras se constroem e é, por isso, a eles que temos que regressar quando somos confrontados com situações para as quais as regras que temos não servem. Há aqui qualquer coisa do jovem Wittgenstein, quando separava o mundo entre aquilo que conseguimos pensar e dizer e o que não conseguimos pensar (Tr 5.6). O mesmo com as regras: não faz sentido querer aplicar regras a situações para as quais elas não foram pensadas. Há que primeiro pensar nas novas situações e então criar novas regras.
O que tem acontecido na Grécia e pode muito bem vir a acontecer com Portugal, é um problema de regras, assente no maniqueísmo que vivemos: como o cenário de default é tomado como inaceitável e, sobretudo, pior do que a alternativa, ou seja, a austeridade dos pacotes chamados de ajuda. E como as regras são para cumprir e os países se endividaram livremente sabendo as regras que lhes eram aplicáveis, então há que tudo fazer para que possam aplicar-se as regras. Mas tudo isto é uma falácia de proporções colossais. Em que as primeiras vítimas são as próprias regras e as últimas serão as pessoas, como se verá na Grécia se tudo continuar neste caminho.
A ideia maniqueísta que preside ao debate europeu é a primeiria ideia que é preciso desmontar. E não se trata sequer de colocar em dúvida esse maniqueísmo - ou seja, de que o não pagamento da dívida seria muito pior do que a austeridade que está a ser imposta à Grécia. Do que se trata é de dizer que desde 2008 até agora, e com tendência para continuar, estamos a viver uma situação para a qual não há regras pensadas e adequadas. Situação de excepção como sucedeu a seguir a guerras mundiais ou a grandes depressões económicas. E, assim sendo, é preciso voltar aos valores para construir novas regras.
E voltar aos valores para construir novas regras significa colocar em plano de igualdade o pagamento da dívida e o não pagamento da dívida. Pelo menos se a Europa ainda se basear nos valores em que creio que se baseia. O Direito sempre previu situações de excepção e de limite e ensaiou modos de explicá-las e resolvê-las (o juiz Hércules de Dworkin vem à memória). Situações em que as regras que estão pensadas para um caso têm que ser suspensas ou abandonadas para se resolver um problema de tal modo excepcional que as regras não conseguem aplicar-se a esse caso. A Europa não consegue admiti-lo. Por um lado tenta criar regras novas, mas por outro tenta criar regras novas como se o quadro dessas regras fosse uma realidade rotineira, conhecida e simples: havia uma dívida e alguém está em risco de não conseguir pagá-la mas tem que pagá-la, por inteiro e o mais depressa possível. Como se fosse assim tão simples. Como se 2008 não existisse, como se 2009 não existisse, como se 2010 não existisse, como se 2011 não existisse. Mas sobretudo como se certos limites às regras - os próprios valores que as legitimam - não existissem.
Tenho ouvido dizer que os países, como a Grécia e Portugal, têm perdido soberania. Não é verdade. Ainda não. Pelo menos se estivermos a falar da soberania que encontra os seus primórdios na Idade Média e que foi teorizada por Bodin e outros. Essa soberania continua a ser exercida, os legítimos Governos, como o da Grécia, continuam a exercer total soberania e é nos termos dessa soberania que têm aceite o que têm aceite, por muito que isso venha custando aos seus cidadãos. Se querem realmente um problema interessante de soberania pensemos nestes termos:
o povo é imperador na sua república e no dia em que decidir - se esse dia chegar - que é hora de voltar aos valores e de criar novas regras, pagar ou não pagar dívidas, aceitar ou não a bancarrota, tudo isso estará em cima da mesa e tudo isso terá que ser respeitado, se a soberania ainda quiser dizer alguma coisa. Se a Europa ainda tiver os valores que penso. Ou então, tudo se resolverá como sempre se resolveu ao longo da história, com pressões, coacção e guerras. E o vencedor fazendo regras que os derrotados terão que cumprir. Até à próxima guerra.