dos amarelos
como seria de esperar, a greve geral de ontem foi um fracasso. foi um fracasso até comparada com a anterior, de novembro, que já não fora um êxito, apesar de ter sido crismada de 'a maior dos últimos 30 anos'.
pode-se, claro, num misto de desalento, desespero, raiva e vontade de encontrar bodes expiatórios, chamar nomes, a começar pelos nomes mais débeis, de quem quer insultar sem parecer que o faz, os que andam à volta de 'insensibilidade' ou 'elitismo' ou mesmo 'ignorância' ou 'falta de informação' até aos do costume, de manifesto setentão, de fascista, burguês, serventuário, inimigo do povo (ou 'das pessoas', na versão mais romântica) etc, a quem reconhece o fracasso e considera que ele deve inspirar reflexão. dizem os que acham que a reflexão, só por si, é traição que os motivos do fracasso são o medo e a necessidade. o medo de perder o emprego, de desagradar ao patrão (seja o patrão privado ou público, ou público prestes a tornar-se privado), a necessidade que faz não poder passar sem um dia de salário. estes motivos são válidos para perceber muita coisa e nomeadamente os números de adesão à greve. mas, claro, não explicam tudo. e não há ninguém com o mínimo de informação e capacidade de olhar (para as pessoas, precisamente) que não saiba que não explicam tudo.
e não explicam porquê? porque esses motivos começam por negligenciar o facto de haver muita gente -- gente que é constituída por, imagine-se, 'pessoas' -- que não faz greve porque acha que isso 'não resolve'. e quando diz e pensa que 'não resolve' não está necessariamente a falar de qualquer desaprovação da ideia de protesto ou de uma qualquer moral que considere que não trabalhar é pecado, mas da noção de que há muito que as greves gerais não se concretizam em qualquer reivindicação 'atendida' ou conquista. que há muito que se transformaram num happening mediático de parada de centrais sindicais e de incidentes com piquetes e números esgrimidos, sem que delas se esprema algo de mais útil que uma suposta demonstração da 'força dos trabalhadores', demonstração que, em casos como o de ontem, resulta como contra-propaganda.
depois, esses motivos negligenciam a existência de muita gente a quem o dia de salário a menos não faz assim tanta diferença e que mesmo tendo noção que pode, como quaisquer outros que tenham emprego para perder, perder o emprego, sabe que isso nao sucederá por causa de um dia de greve, gente que está irritada com o que se está a passar e que quer protestar e que mesmo assim não adere.
(nem vou falar da gente que não tem ou já não tem emprego. nem vou falar da mutação do mercado de trabalho nos últimos vinte anos; atenho-me só aos que trabalham por conta de outrem e cabem na definição de 'empregados')
dizer 'se não for a greve geral é o quê', exigir a quem diz que isto já não serve que apresente alternativas ou se cale para sempre é, como dizer, estúpido. e é estúpido não por oposição à inteligência das posições que confronta, ou porque não faça sentido perguntar a quem diz que são precisas alternativas que alternativas tem para propor, mas porque se barrica na ideia de que se não surgem alternativas fantásticas então é inaceitável criticar o que há, reconhecer que não funciona.
é estúpido e é pior que estúpido: ostenta todos os vícios que imputa à posição que ataca. desde logo, o vício do elitismo distraído e desinformado, por ignorar resolutamente, desrespeitando-as, as razões e sentimentos de todas as pessoas (pessoas, imagine-se; e trabalhadoras, incrível, da classe trabalhadora) que não fazem greve carimbando-as ou de medrosas ou de inconscientes e abúlicas; desde logo, o preconceito classista, por evidenciar um entendimento da classe trabalhadora e das 'pessoas' de canção revolucionária (operários camponeses hão-de um dia), como sendo apenas e só os que, do seu ponto de vista, estão 'do lado da classe trabalhadora e das pessoas'; desde logo, o da ausência de solidariedade, de sensibilidade e de 'capacidade e olhar', por postular que se define uma linha aqui, entre os que vêem as reais necessidades, a nobreza, a verdade das pessoas e os que, distraídos ou caprichosos ou burros ('preconceituosos') ou vendidos ou traidores ou tudo isso ao mesmo tempo, recusam ver.
a greve geral é um conceito épico, eisensteiniano, com uma história nobre, gloriosa -- que é, atenção, de toda a gente, até da gente que nunca pensou nisso. e é também por esse motivo que é tão triste usá-la tão mal, destituí-la de sentido, de espessura, fazer dela uma caricatura.
a greve geral não é marca registada de ninguém, não é um pin para pôr na lapela. e, sobretudo, não devia ser campo de batalha entre pessoas (pessoas) que estão a passar pelo mesmo.
a coragem, perante o que se passa, passa também por ser capaz de pôr em causa conceitos cristalizados, modos de agir enquistados, fórmulas petrificadas. e sobretudo, decerto, não passa por proclamar que só existe coração e independência em quem diz o que nós queremos ouvir, o que aceitamos ouvir, age e decide como achamos que se deve agir e decidir.
mas que fazer. e não, não foi isto que disse lenine; ele perguntou.