Descansa consciências e depois?
As inovações legislativas no domínio violência doméstica, e da violência sobre as mulheres em particular, têm sido muitas e importantes, destacando-se, do meu ponto de vista, a individualização deste crime no Código Penal e o facto de ser um crime público. Mas tão relevante quanto essas alterações é a sua exequibilidade.
Há poucos dias recebi o seguinte pedido de primeira consulta "Vimos por este meio solicitar a marcação de consulta e acompanhamento clínico (...) no âmbito de uma suspensão de pena de prisão por x anos determinada pelo Tribunal Y com origem na prática de cúmulo de violência doméstica, com a injunção de "tratamento e acompanhamento psicológico ou psiquiátrico do arguido" conforme cópia anexa". No referido anexo encontrava-se o apelo ao número 4 do artigo 152º do CP que determina a possibilidade de imposição de penas acessórias, nomeadamente a obrigação do arguido em frequentar "programas específicos de prevenção de violência doméstica". Formalmente nada a apontar.
Uma das inovações introduzidas em 2007 foi, efectivamente, aquela possibilidade de comutação da pena de prisão. A questão que se coloca é a de saber onde estão e quem tem formação específica para desenvolver esses programas. Em Dezembro de 2010 foi publicado em DR o IV Plano Nacional contra a Violência Doméstica (2011-2013). Como explicou Elza Pais, à altura secretária de estado da Igualdade, o "plano tem uma área estratégica nova que não existia no anterior". Referia-se ao Programa para Agressores de Violência Doméstica, então a ser testado na região Norte a título experimental. Acontece que desde então não houve novidades sobre esta matéria e não existem dados sobre a evolução do referido programa experimental nem notícias sobre outros programas semelhantes a decorrer em qualquer região do país. Assim sendo, esta alternativa que a lei prevê não é passível de ser executada. Pergunto eu, quem determina a sentença não é obrigado a saber da sua não exequibilidade? E que papel é o meu, enquanto psiquiatra, na resposta a um pedido deste género? Brincar aos programas e fingir um acompanhamento psiquiátrico para o qual não tenho qualquer formação específica é coisa que me recuso a fazer por me parecer ética e deontologicamente reprovável. Enviar para alguém que o possa e saiba fazer não existe como possibilidade. Resta-me, portanto, devolver o pedido à proveniência com esta informação, porque descansar consciências não é, não pode ser, o papel da lei.