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dia de orgulho, orgulho de dia: rewind

Nunca, nestes 37 anos, fui à manifestação que amanhã, como em todos os aniversários da revolução de 1974, desce a avenida. Nunca fui e nem sei bem porquê. Por, talvez, me parecer, nas fotos e reportagens de TV, uma coisa sem alma, sem a intensidade que guardo da memória deste dia e que ainda me comove – sempre – nas imagens dos soldados em pose sobre os tanques, em performance pueril, feliz, e dos rostos da multidão que enche o largo do Carmo, Francisco Sousa Tavares e o seu megafone no meio das árvores, e esse milagre dos cravos, flores por balas, são flores, senhores, nem tiros nem mortos e feridos, nem sequer ajustes de contas: flores.

 

Pareceu-me sempre, estes anos todos, que nada poderia estar à altura disso. Era muito nova nos seguintes, demasiado para ir por mim, só (e ninguém me levou); quando tive idade para decidir estava na fase anti-manifestações, anti-massas, anti um certo folclore que associo a essa marcha que, para além do mais, me surgia sequestrada por grupos com os quais não só não me identifico como considero contrários ao melhor desse dia. E assim sempre até que, o ano passado, vi num blogue, num pequeno filme feito no dia, o que nunca tinha visto. Qualquer coisa de sublime – talvez porque o filme não tinha som nem palavras de ordem nem “caras” nem discursos, eram os rostos que se fixavam: rostos de uma exaltação tranquila, feliz, de quem cumpria um dever. O de honrar a memória do dia, como do antes e do depois. O de garantir que valeu a pena e que nunca vamos esquecer isso. O de dizer que sabemos a sorte que temos por ter havido quem nessa madrugada arriscasse tudo para que a avenida da liberdade fosse mesmo isso, uma avenida livre numa cidade livre num país livre que se desce e sobe sem sequer pensar nisso.

 

Não sei, claro – ou sei, claro – se todos os que tornaram isto possível fizeram o que fizeram com essa intenção; não sei – ou sei -- se alguns se arrependeram ou se deram em (ou foram sempre?) idiotas fanfarrões incapazes de resistir, por uma parangona ou cinco minutos de TV, a largar umas larachas à guisa de iconoclastia. Não me interessa. O dia e o feito sobrelevam, sobrevoam, esmagam todas as tentativas de apropriação oportunista ou simplesmente patética. Não são de ninguém, não têm assinatura nem autoria. Passaram a monumento, património da humanidade. Podem ser ou não celebrados no parlamento, com cravos na lapela ou sem eles: são maiores que isso, e riem de quem, eleito numa democracia que se fundou nesse símbolo, o rejeita.

 

Desde que em 2010 vi o clip no fworld, o blogue da Fátima Rolo Duarte (f-world-blog.blogs.sapo.pt), decidi que este ano iria à marcha. Talvez tenha precisado de 37 anos inteirinhos para perceber que é meu dever lá estar, que não chega saber para comigo que foi um dos melhores, maiores dias da minha vida, mesmo se tinha só 10 anos, mesmo se o que vi da revolução ao vivo foram soldados na ponte Marechal Carmona (que ainda se chama assim, já agora), e que o que sou, como o que somos, as escolhas que pudemos e podemos fazer, o que podemos e pudemos sonhar e rejeitar, se fundou aí, se iniciou aí, se ancora aí. Que é altura de engrossar o número dos que celebram e não capitular na entrega disto a seja quem for, e muito menos ao olvido. Coincidência que seja este o ano em que se tornou comum, banal, quase normal ouvir e ler que “antes era melhor” ou que “não valeu a pena”. Coincidência que seja este o ano em que a Assembleia da República não festeja. Coincidência, sem dúvida, mas feliz, digo eu: é agora que é mais preciso, e é agora que faz mais falta. Fazer a marcha do orgulho do 25 de Abril. Embora.

 

(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 24 de abril de 2011; publicado aqui, no jugular, uma semana depois)

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