A brincar com o fogo
Estamos em Fevereiro e o país espreguiça-se à conta dos dias de sol e da ressaca de mais uma ponte de Carnaval, já a pensar na Sexta-Feira Santa e na Páscoa. Não há-de tardar muito, na aproximação da Primavera, a chegada da sazonal maré noticiosa sobre a preparação de mais uma "época de fogos". Falar-se-á muito dos meios, dos investimentos, dos aviões, da logística e da Protecção Civil. Depois ficaremos todos à espera, que venha ele. E virá, certamente. Em Agosto, entre banhos de Algarve e mais um Verão de seca, lá nos lembraremos do assunto ao abrir os noticiários e ao desfolhar os jornais. Lá virão mais umas imagens aflitivas de gente desesperada, mais umas estatísticas e mais umas leituras de uns comentadores de serviço. No final da estação seca, o balanço será mau ou nem por isso. Mesmo que seja péssimo, será sempre possível achar a média com o Verão de 2007, que foi excepcionalmente bom, mais por graça do S. Pedro que da Protecção Civil.
Confesso que não sou particularmente alarmista com a questão dos fogos. Não é uma calamidade apocalíptica. Um país de clima mediterrânico tem que saber viver com ele, controlá-lo, minimizá-lo, utilizá-lo favoravelmente. Há dias, porém, ouvi uma notícia na rádio que me fez reflectir sobre a questão. Curiosamente, não a vi reproduzida em nenhum jornal nem em nenhuma televisão. Nem na Net vi qualquer referência ao assunto. Cheguei a pensar que teria sonhado. Só depois percebi que é um tema que não interessa a ninguém, por enquanto. Aposto que lá para Julho virão todos repescá-lo, e algum espirituoso irá dizer, entre outras coisas, que é uma pena que só se fale disto no Verão, quando nos começa a cheirar a queimado.
A notícia, que ouvi na Antena 1, mencionava um relatório-diagnóstico feito pela Universidade de Trás-os-Montes que detectou falhas graves no dispositivo de combate aos incêndios. Falhas graves, sobretudo na estrutura de comando na prática, no terreno. Não falava de falta de viaturas, de homens ou de dinheiro. Mencionava, isso sim, descoordenação de meios, falta de informação em tempo real, falta de especialistas em fogos nocturnos, montagem de postos de controle tardios ou mal localizados. E mais uma série de erros que me escapam agora. Numa palavra, uma balda, uma trapalhada, um caos. Os bombeiros atropelam-se, ninguém sabe o quê, o comando não decide com base em informação actualizada e completa, o combate é feito muito por carolice e por valentia pessoal dos bombeiros . Depois, de vez em quando, lá fica um, dá-se-lhe uma medalha póstuma e lamenta-se a fatalidade. Nesse dia, ouvi declarações de um chefe de bombeiros a dizer que estas conclusões não o surpreendiam. Aguardava ainda a reacção da Protecção Civil, mas entretanto o assunto morreu nos noticiários. Como disse acima, nunca chegou aos jornais ou às televisões. Parece ter sido um estudo encomendado pelo governo em Julho e cujos resultados, aparentemente, terão saído agora. O silêncio geral sobre o tema não deixa de me inquietar, no que significa de controle de informação, manobras de diversão mediáticas e fogachos para o povoréu se entreter. De vez em quando aparecem umas informações que vão dando o tom. Ora são os chilenos que vêm cá e admiram-se com o portuguese way of combater incêndios, dizendo, entre outras coisas, que o desperdício de água é mais do que muito. Os chilenos, viram bem? Ora são as notícias atrapalhadas de que começaram os fogos mas os aviões ainda não estão alugados, porque ainda não é a época deles. Como se fossem morangos. Ora lá vêm novas sobre a intenção de comprar aparelhos em vez de alugá-los e que só falta escolher entre os Beriev ou os Canadair. Ora viram tudo do avesso e afinal decidem que Portugal já não irá comprar aviões, mas sim helicópteros. Há dias ouvi que os helicópteros adquiridos ou a adquirir afinal não servirão para muito, porque não têm espaço para transportar as brigadas de intervenção rápida, que fora um dos factores que levara a adoptar esta solução em vez da dos aviões. Uma trapalhada, como a do relatório. No Verão passado tive fogo à porta de casa e vi a confusão com que os meios (muitos) actuavam, mas sem uma palavra que fosse às populações, porém com todo um belo aparato para jornalista ver, circo mediático, presidentes de câmara, ministros e altas individualidades na ribalta. Mas que merda. Um país mediterrânico como Portugal não pesca nada de combater fogos florestais? Até parece que o fogo é uma modernice. Não devíamos estar treinados, aprender com os erros, melhorar de ano para ano, dar lições lá fora? Somos bons só a fazer árvores de Natal gigantes e rolhas para o vinho californiano, temos o maior centro comercial da Península Ibérica e somos campeões em número de telemóveis por habitante, para além de outras medalhas de valor e utilidade duvidosas, e não sabemos combater fogos? Uns inaptos? E, bem pior, só descobrimos isso em 2008, após um estudo feito por uma universidade? Das duas, uma: ou ficamos surpreendidos, o que quer dizer que alguém nos anda a atirar areia para os olhos há décadas, ou concluímos que "já se sabia", o que significa que somos burros e aprendemos devagar, ou não aprendemos de todo. A brincar com o fogo, em suma.