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elementar, meus caros

A crise promove a solidariedade, faz emergir o que de melhor há em todos nós, revela o espírito de entreajuda, facilita a coesão social, porque atinge-nos a todos, não é? Os tempos são sombrios, mas a generosidade e abnegação dos portugueses saberá superá-los, certo? Errado. Só nos livros, nos discursos, nas declarações de intenções, nas frasezinhas de ocasião e a propósito. De resto, é a selva. Há um caso presente que está a causar furor no dia de hoje. Só gostava que fosse um furor para encher uns certos senhores de alcatrão e penas, como nos livros do Lucky Luke. Sou geralmente cético e contido em relação a muitos episódios que causam "indignação", nomeadamente nas redes sociais. Mas esta parece-me que excede tudo, pelo oportunismo, pelo sentido de desprezo e de provocação a quem trabalha, do abuso vergonhoso de uma posição de força perante uma situação de crise como a que vivemos. Elementar, meus caros: estão a gozar connosco.

O Pingo Doce decidiu, em pleno assomo de genialidade empresarial, fazer uma promoção hoje. Não é um descontito em cartão; é um desconto real, de 50%, a compras superiores a 100 euros. Vão caindo, minuto a minuto, as informações sobre filas imensas, confusão, desacatos, brigas entre clientes, agressões a funcionários. Nada disto seria muito grave, em circunstâncias normais. Mas hoje não é um dia qualquer: é 1º de Maio, Dia do Trabalhador, feriado nacional sobre o qual vigorou durante muito tempo um acordo de princípio, entre patrões e trabalhadores, de que seria dia de encerramento. Há algum tempo começaram as exceções. No ano passado, a funcionária da peixaria do supermercado que costumo frequentar dizia, alto e bom som para quem a quisesse ouvir, que estava muito triste com o que estava a ocorrer. Hoje havia greves marcadas em várias cadeias de supermercados, com adesões variáveis. Nada disto, por si só, seria também muito grave.

O que é grave, vergonhoso, é a conjugação de tudo num cenário de crise e precisamente no dia de hoje, e a forma como uma empresa dominante faz uma jogada ignóbil, um perfeito "divide to rule". Lembrei-me logo de outros tempos, dos cenários que levaram, precisamente, às conquistas sociais e à instituição do 1º de Maio. Nesses tempos, os donos das fábricas lançavam operários contra operários, grevistas contra fura-greves, todos miseráveis, todos sujeitos à mesma pressão; hoje, a Jerónimo Martins lança consumidores contra caixas e empregados de loja. É um dia de suprema humilhação para os trabalhadores do Pingo Doce: não só são miseravelmente mal pagos, e muitos, precários, como são forçados a trabalhar (e quem vier dizer que "são livres de recusar" merecia ser chicoteado na praça pública) no dia que deveria consagrar o respeito pelo seu labor, como ainda são confrontados com hordas de clientes desesperados, e suportar um dia infernal. Alguém deve estar a dar enormes gargalhadas nos seus gabinetes, a esta hora, enquanto olham para os clientes a esvaziar prateleiras e a esgotar carrinhos, verificam as vendas recorde e confirmam a reduzida adesão à greve. Genial, de facto. Que se seguirá? Uma sugestão: quando houver greves ou protestos marcados, abram da meia-noite às 6 da manhã ou façam uma maratona de 2 semanas seguidas, non-stop, com "happy hour" a essas horas, com iguais descontos; vai ser uma gargalhada.

Gostava, em prol do que resta da dignidade dos portugueses, que fosse feito um boicote ao Pingo Doce, daqueles de deixar lojas às moscas. Porém, num país nas mãos de meia dúzia de retalhistas e de banqueiros (e agora lembro-me dos Donos de Portugal), limitar-se-ia provavelmente a favorecer a concorrência, que não é menoz voraz. Isto, infelizmente, é também cada vez mais elementar.

Adenda: gostava de saber a opinião deste senhor.

 

P.S.: Estranhamente, este post assinala o máximo de comentários permitidos (65 mil e tantos). Na verdade, nem um foi aprovado. Foi bug ou hacker. A anomalia já foi comunicada ao Sapo. 

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