De banhas da cobra e iliteracia química
Há uns tempos fui contactada por um dos editores do site PouparMelhor, a propósito de um artigo que, em termos muito suaves, explicava não ser verdade que uma determinada banha da cobra, com a acção mística/alquímica nas ligações C-H supracitada, pouparia em média 20% de combustível.
Aparentemente, os senhores que vendem a dita cuja banha da cobra não gostaram, como é normal num certo tipo de charlatães, e, depois de atafulharam a caixa de comentários do referido post com obras primas da literatura e pérolas redondinhas de ignorância química, partiram para o que também é a norma neste tipo de gente: as ameaças legais. Neste caso, felizmente sem sucesso, e, espero, com todos os inconvenientes do efeito Streisand.
Já desmistifiquei um ror de dispositivos que, "cientificamente" comprovado, permitiriam poupar uma percentagem absurda de combustível, por efeito quântico (todos os charlatães simplesmente adoram a quântica), magnético ou afins, mas é a primeira vez que ouço falar no princípio de Van der Waals para semelhante desiderato. Aliás, embora o nome do Nobel da Física de 1910 abunde no léxico científico, de equações de estado a forças intermoleculares, é também a primeira vez que ouço falar em tal princípio. Lendo a propaganda da coisa, qualquer que seja o Tech porque a designam, Super ou Mole, não me admira muito: quem escreve o número assombroso de dislates sem pés nem cabeça nos 450 caracteres que se seguem nem deve fazer ideia o que seja ciência - embora use e abuse do falacioso (pseudo*)argumento de autoridade científica para impor respeitabilidade à sua banha da cobra.
"Este dispositivo tem a capacidade de mudança em três áreas dentro do espectro do combustível pela absorção de CH (benzeno) de hidrocarbonetos saturados e insaturado. De acordo com as pesquisas da universidade, a cerâmica absorve a energia térmica a partir do seu ambiente circundante, em seguida, liberta-o em comprimento, quebrando a força intermolecular de “van der Waals” (a força que une as moléculas). O resultado consiste na mudança de agregação das moléculas do combustível de ‘cluster’ ou aglomerado para uma única molécula."
Não faço ideia a que se refiram por espectro do combustível, mas intriga-me particularmente que consigam absorver benzeno de hidrocarbonetos saturados. Será certamente neoalquimia ou então um passe de mágica análogo ao que permite que uma cerâmica absorva energia térmica e a liberte em comprimento (o que quer que isto seja). Mas, já agora, não há força de van der Waals: o termo designa as interacções intermoleculares puramente electrostáticas e são três estas interacções: Keesom, London e Debye. E a alteração do estado de agregação de um liquído de "‘cluster’ ou aglomerado para uma única molécula [já agora também, o termo a usar é molécula isolada]", por quebra das interacções intermoleculares tem um nome: vaporização. Ou seja, acontece quando esse liquido passa para o estado de vapor e não é preciso qualquer dispositivo de 150 euros para que isso aconteça... a tensão de vapor encarrega-se da evaporação e o aquecimento do resto.
E já que estamos em dislates por caracter, outro sério candidato ao prémio iliteracia química é o jornalista que escreveu o artigo que ilustra o post que, para além de inventar um elemento/composto desconhecido até ele, o Dilício, nos explica que a coisa, um dispositivo sólido constituido por sais sortidos com metais (?!) e carbono (?!), provoca um "enfraquecimento temporário [!!!] nas ligações das moléculas [!!!] de carbono com as moléculas [!!!] de hidrogénio, possibilitando uma melhor combinação entre estes elementos [facepalm]", algo que certamente lhe valeria um prémio Nobel da Química se, emendadas as moléculas para átomos, elaborasse sobre como o referido ...er... compósito, faz "um enfraquecimento temporário" de uma ligação C-H. E seria certamente de antologia a explicação do que é "uma melhor combinação entre estes elementos".
* A página da banha cobra diz que os resultados são validados pelo Departamento de Engenharia Ambiental da Califórnia (CEE) - Centro de Pesquisas Ambientais. Existe de facto um CEE, California Environmental Engineering, cujas únicas atribuições consistem em testar os gases de escape de veículos e/ou motores e confirmar que estão conforme as regulações. Como explica o site, "CEE, LLC has state of art equipments to test emissions" e "is a place where any entity can test their device, additive, engine and vehicle". Uma pesquisa rápida por "California Environmental Engineering laboratory” explica que o CEE é usado para dar uma "capa" de respeitabilidade a tudo quanto é banha da cobra combustível. Sei lá, o “Advanced Fuel Carburetor and Cat Converter”, o “Green Plus” fuel catalyst, o “Rentar Fuel Catalyst, o Omstar D-1280X, o EthosFR fuel catalyst, enfim, banhas da cobra análogas. De igual forma, o CARB/EPA não certifica nem reconhece coisissima nenhuma, mais uma vez só tem a ver com emissões de gases poluentes, e não espanta que a coisa não piore as emissões, a coisa é assim a modos que uma homeopatetice combustível, um desperdício de dinheiro que não faz nada, muito menos o milagre de, simultaneamente, diminuir as emissões de hidrocarbonetos não queimados e de CO2.
Adenda: Descobri agorinha no Facebook que o Ludi tem um post sobre o mesmo tema cuja leitura recomendo :)